Você nunca
foi a Paris nem visitou o túmulo de Victor Hugo? Nenhum problema. Em qualquer
pequena cidade do interior, não deixe de visitar o cemitério. Não esses
modernos de grama e placa, sem graça. Mas aqueles antigos, com mausoléus,
túmulos, estatuários e dizeres.
Certamente,
você irá encontrar um caminho, muito limpo, pois, afinal, os mortos estão entre
os mais ordeiros. Sempre haverá uma alameda de tuias. Siga em frente. Pare onde
encontrar um túmulo sem nenhuma inscrição. É o “túmulo-sem-nome”. Não há
registro que indique a propriedade do habitante e uma centena de hipóteses já
foram erguidas sobre quem ali dorme, protegido pela bênção do anonimato.
Em
reverência ao sabe-se-lá, reze diante de algo que não tem forma nem nome e
provavelmente nem conteúdo. Quem não acredita, tampouco abusa. O manifesto
funciona como ocultação. O mistério preserva o que não pode ser dito.
Mas, em lá
estando, observe. É a pura existência do lugar que produz o que de outra forma
não seria possível nomear. Nesse momento, o “túmulo-sem-nome” cresce, mais real
que a realidade. Torna-se um símbolo silencioso, porém imensamente mais
eloquente do que outros túmulos bem-nomeados.
É que
precisamos disso. Precisamos de uma escuta contemplativa.
Viemos de
uma dessacralização radical. Mas todo movimento provoca como mecanismo
compensatório outro mecanismo, ainda mais radical. Não sei se você percebeu,
mas o sagrado anda voltando pelo profano. É que ninguém foi feito para suportar
o vazio. De onde o sagrado desapareceu, apareceram compensações rituais para o
insuportável oco à espera de eco. Assim, por exemplo, observe as cerimônias
solenes, aberturas de jogos, copas do mundo, piras olímpicas, bandeiras,
medalhas e signos, ainda se construídos pela indústria do entretenimento. É
sempre a mesma tentativa de responder ao vazio do mistério, é sempre um desejo
que se revela como anseio do todo e total.
Aquela
imagem do homem urbano, secularizado, dessacralizado, vai se revelando
ultrapassada, démodé. Qualquer morador, sobretudo, das grandes cidades procura
a transcendência, mesmo sem consciência disso. Ele sabe que algo, que deveria
estar ali, faz falta. Só não sabe o quê.
O mundo já
foi apresentado como um lugar distante de Deus, e o homem representado como um
ser solitário nesse mundo vazio, à deriva, num mecanismo incompreensível, no
qual o poder dos fatos alcançava dimensões jamais vistas. Seria um mundo
achatado, que se baseasse em princípios de planejamento, com computadores e
processos de trabalho. E onde tudo funcionasse conforme leis inerentes ao
próprio mundo, no do qual a referência do sagrado se tornou desnecessária,
supérflua, inconveniente, de mau gosto. Ninguém se deu conta do sentimento
brutal de perda e desilusão. Mas é que isso também era desnecessário,
inconveniente ...
Um mundo
assim foi construído para fornecer a suficiente ilusão de controle.
Mas, e
quando nesse mundo planejado acontece o imprevisto? Aí há rebelião. Greves nas
linhas de produção, insatisfação de braços cruzados, observadores neuróticos
diante de painéis de controle automatizados que não funcionam, crentes
frustrados com suas matrizes religiosas buscando garantias em satisfações
auto-gratificantes, dependentes químicos e dependentes da química do amor,
assalto e violência, sofrimento e dor, mortes ainda mais estúpidas que a
própria estupidez da morte. Há o indizível da vida.
Todos esses
fenômenos sinalizam que por detrás da fachada de um mundo bem planejado se
esconde um vazio sem nome. Um vazio do útil, do pronto, do instantâneo. O vazio
urbano decorreu da fixação no mensurável, sem desconfiar de um sentido último
que nem se mede nem se compra nem se apropria. Não tem preço nem medida. O
homem urbano virou anônimo: um “túmulo-sem-nome”.
Mas a gente
precisa do nome das coisas. E os nomes viram sagrados. E o sagrado irrompe de
novo no mundo. O homem doador de nomes chama o sagrado de volta. Não veem que o
gestual respeitoso de um final de Copa do Mundo, por exemplo, reassume o
significado sacramental, que antigamente fazia parte da experiência humana
religiosa? Não tem jeito. Por um movimento inerente à nossa finitude, sempre
voltamos à casa onde mora o todo. Se é que um dia saímos.
Veja lá, meu
amigo, em qualquer cidade pequena de interior, sempre existe um
“túmulo-sem-nome”. Essa é uma boa maneira de começar a questionar sobre tudo o
que faz parte do sistema que nos ameaça de afogamento.
Não deixe de
visitar. Constate que se existe, naquele contexto, um lugar sem nome, isso não
significa que seja sem nada. O provável conteúdo interno, sua total
desintegração e ineficácia diante de um mundo organizado, não justificam o
espaço que ele ocupa. Mesmo assim, está lá. E vai permanecer. Numa provocação.
Numa contestação. Quase num insulto.
Façam o que
fizerem – diz o tal túmulo – vocês podem terminar do mesmo modo. Ignorados.
Talvez, porque já o sejam.
Vá, lá. Nem
que seja para constatar que algo sem o menor propósito funcional e sem nenhum
valor mercadológico consegue gerar pensamento e atitude, sobretudo, depois que
você sair de lá. O “túmulo-sem-nome” não é apenas sem nome. É também sem tudo:
beleza, nobreza, distinção. Sem dono nem pretendente a. É só porque ele existe
que faz sentido.
Todo aquele
sem nada do lado de fora convoca o nosso sem tudo do lado de dentro. Provoca.
Como disse, quase insulta. Se você sair com dúvidas, incertezas e vazios, mais
uma vez, o “túmulo-sem-nome” existiu para fazer sentido. Esse é o seu sentido.
Quem sabe, não foi por isso que ele permaneceu, tanto tempo lá? E sem nome?
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