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11 de novembro de 2015

O TÚMULO-SEM-NOME – Renato Lobo



Você nunca foi a Paris nem visitou o túmulo de Victor Hugo? Nenhum problema. Em qualquer pequena cidade do interior, não deixe de visitar o cemitério. Não esses modernos de grama e placa, sem graça. Mas aqueles antigos, com mausoléus, túmulos, estatuários e dizeres.

Certamente, você irá encontrar um caminho, muito limpo, pois, afinal, os mortos estão entre os mais ordeiros. Sempre haverá uma alameda de tuias. Siga em frente. Pare onde encontrar um túmulo sem nenhuma inscrição. É o “túmulo-sem-nome”. Não há registro que indique a propriedade do habitante e uma centena de hipóteses já foram erguidas sobre quem ali dorme, protegido pela bênção do anonimato.

Em reverência ao sabe-se-lá, reze diante de algo que não tem forma nem nome e provavelmente nem conteúdo. Quem não acredita, tampouco abusa. O manifesto funciona como ocultação. O mistério preserva o que não pode ser dito.

Mas, em lá estando, observe. É a pura existência do lugar que produz o que de outra forma não seria possível nomear. Nesse momento, o “túmulo-sem-nome” cresce, mais real que a realidade. Torna-se um símbolo silencioso, porém imensamente mais eloquente do que outros túmulos bem-nomeados.

É que precisamos disso. Precisamos de uma escuta contemplativa.

Viemos de uma dessacralização radical. Mas todo movimento provoca como mecanismo compensatório outro mecanismo, ainda mais radical. Não sei se você percebeu, mas o sagrado anda voltando pelo profano. É que ninguém foi feito para suportar o vazio. De onde o sagrado desapareceu, apareceram compensações rituais para o insuportável oco à espera de eco. Assim, por exemplo, observe as cerimônias solenes, aberturas de jogos, copas do mundo, piras olímpicas, bandeiras, medalhas e signos, ainda se construídos pela indústria do entretenimento. É sempre a mesma tentativa de responder ao vazio do mistério, é sempre um desejo que se revela como anseio do todo e total.

Aquela imagem do homem urbano, secularizado, dessacralizado, vai se revelando ultrapassada, démodé. Qualquer morador, sobretudo, das grandes cidades procura a transcendência, mesmo sem consciência disso. Ele sabe que algo, que deveria estar ali, faz falta. Só não sabe o quê.

O mundo já foi apresentado como um lugar distante de Deus, e o homem representado como um ser solitário nesse mundo vazio, à deriva, num mecanismo incompreensível, no qual o poder dos fatos alcançava dimensões jamais vistas. Seria um mundo achatado, que se baseasse em princípios de planejamento, com computadores e processos de trabalho. E onde tudo funcionasse conforme leis inerentes ao próprio mundo, no do qual a referência do sagrado se tornou desnecessária, supérflua, inconveniente, de mau gosto. Ninguém se deu conta do sentimento brutal de perda e desilusão. Mas é que isso também era desnecessário, inconveniente ...

Um mundo assim foi construído para fornecer a suficiente ilusão de controle.

Mas, e quando nesse mundo planejado acontece o imprevisto? Aí há rebelião. Greves nas linhas de produção, insatisfação de braços cruzados, observadores neuróticos diante de painéis de controle automatizados que não funcionam, crentes frustrados com suas matrizes religiosas buscando garantias em satisfações auto-gratificantes, dependentes químicos e dependentes da química do amor, assalto e violência, sofrimento e dor, mortes ainda mais estúpidas que a própria estupidez da morte. Há o indizível da vida.

Todos esses fenômenos sinalizam que por detrás da fachada de um mundo bem planejado se esconde um vazio sem nome. Um vazio do útil, do pronto, do instantâneo. O vazio urbano decorreu da fixação no mensurável, sem desconfiar de um sentido último que nem se mede nem se compra nem se apropria. Não tem preço nem medida. O homem urbano virou anônimo: um “túmulo-sem-nome”.

Mas a gente precisa do nome das coisas. E os nomes viram sagrados. E o sagrado irrompe de novo no mundo. O homem doador de nomes chama o sagrado de volta. Não veem que o gestual respeitoso de um final de Copa do Mundo, por exemplo, reassume o significado sacramental, que antigamente fazia parte da experiência humana religiosa? Não tem jeito. Por um movimento inerente à nossa finitude, sempre voltamos à casa onde mora o todo. Se é que um dia saímos.

Veja lá, meu amigo, em qualquer cidade pequena de interior, sempre existe um “túmulo-sem-nome”. Essa é uma boa maneira de começar a questionar sobre tudo o que faz parte do sistema que nos ameaça de afogamento.

Não deixe de visitar. Constate que se existe, naquele contexto, um lugar sem nome, isso não significa que seja sem nada. O provável conteúdo interno, sua total desintegração e ineficácia diante de um mundo organizado, não justificam o espaço que ele ocupa. Mesmo assim, está lá. E vai permanecer. Numa provocação. Numa contestação. Quase num insulto.

Façam o que fizerem – diz o tal túmulo – vocês podem terminar do mesmo modo. Ignorados. Talvez, porque já o sejam.

Vá, lá. Nem que seja para constatar que algo sem o menor propósito funcional e sem nenhum valor mercadológico consegue gerar pensamento e atitude, sobretudo, depois que você sair de lá. O “túmulo-sem-nome” não é apenas sem nome. É também sem tudo: beleza, nobreza, distinção. Sem dono nem pretendente a. É só porque ele existe que faz sentido.

Todo aquele sem nada do lado de fora convoca o nosso sem tudo do lado de dentro. Provoca. Como disse, quase insulta. Se você sair com dúvidas, incertezas e vazios, mais uma vez, o “túmulo-sem-nome” existiu para fazer sentido. Esse é o seu sentido. Quem sabe, não foi por isso que ele permaneceu, tanto tempo lá? E sem nome?

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