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8 de novembro de 2015

CAIM E ABEL – Renato Lobo




Toda vez que algo falha no funcionamento de nosso equipamento conceitual e que aparece um buraco naquilo que a gente já entendia, toda vez que o fácil fica difícil, saímos à cata de uma teoria. Qualquer uma. A primeira que aparece.

E fazemos perguntas.

Na verdade, toda teoria nasce de alguma pergunta. O que nos faz humanos? O que nos desumaniza? Por que existe o mal? Perguntas de um tamanho descomunal para as quais faltavam respostas. Daí, surgiram os mitos originários. Ou seja, o homem começou a jornada interpretativa de si mesmo dando a mão à religião. É que os impasses e tarefas superavam as possibilidades inerentes à condição humana, naquele momento.

Mas o dramático é que a religião, em lugar de oferecer solução à desumanização, pelo contrário e com frequência, agravou a inumanidade que, com tanta dor, humilhação e sofrimento, vimos padecendo nos últimos 6 a 7 mil anos.

Foi daí, dessa época, que surgiu o mito de Caim e Abel, recolhido na tradição judaica. Abel, mesmo, só entra na história para morrer. Não dá um pio. Entra mudo e sai morto. Mas o mais significativo nesse mito é que o motivo que desencadeou o enfrentamento fratricida foi um ato especificamente religioso: a oferenda de um sacrifício cultual a Deus. Diante da oferta de dois irmãos, Deus reage, esquisitamente, acolhendo um, rejeitando o outro. No mínimo, suspeito!

Na verdade, o motivo mais provável daquela violência foi que ali já trocavam farpas e se enfrentavam duas formas de viver a vida e de entender a religião; formas muito, mas muito incompatíveis. Vocês se lembram que Abel era pastor e Caim, agricultor? Está lá, no relato. Essa informação, que passa despercebida a quase todo mundo, é o dado fundamental. Ela quer dizer que Caim e Abel representavam duas culturas imensamente diferentes e estranhas entre si: a cultura nômade das tribos de pastores e a cultura sedentária dos agricultores. Ora, cada uma dessas culturas tinha seu jeito próprio de entender a vida e a religião, cada uma tinha seu deus ou seus deuses, e cada uma habitava um universo que lhe era próprio e o defendia, se fosse preciso, com a morte. Tanto que o resultado, sabemos, acabou nas páginas policiais da Bíblia.

A religião sempre foi uma das pautas onde se escreveu a música da existência.

Observem Abel: um pastor nômade. A religião dos nômades era uma religião de promessa, nunca estática, jamais vinculada a um lugar, a um templo, a um culto, e que vivia sempre da esperança de um futuro melhor. Os pastores andavam, e com eles as notícias, as moedas e as modas transitavam. O pensamento circulava entre os nômades.

Já a religião dos povos sedentários, ao contrário, estava aprisionada a um lugar, a um templo e a um culto. Seus deuses eram estáticos, tinham o olhar voltado para o passado, estavam interessados em manter tradições e posições conquistadas. Caim era isso: um agricultor sedentário, temeroso por suas terras, suas riquezas e suas mulheres.

Essa tensão entre duas formas de entender a religião e a vida, foi a raiz do drama interno e doloroso vivido por tantos povos nômades – entre eles, Israel! –, que se viram instalados, mais tarde, em algum lugar, que, aliás, tiveram de saquear a outro povo. Caim e Abel não são pessoas físicas. São personagens. Representam as dúvidas da existência e o terror de gente como você e eu quando somos chamados a explicar porque somos o que somos, e aonde nos vai levar o caminho que escolhemos, caso nos mantenhamos nele.

Caim e Abel somos todos nós. Todos trazemos lados obscuros, tramas inconfessáveis, medos que nos aterrorizam à noite, desejos que nos inquietam de dia. Em cada um de nós vive Caim e Abel, Ismael e Isaac, Esaú e Jacó. Sempre aos pares. Sempre pelo menos dois. Pelo menos!

Caim e Abel são as partes desirmanadas, descasaladas, desencontradas de nós mesmos, sobretudo, quando desejamos algo, e terminamos na direção contrária. Somos assim: pelo menos, dois. Gêmeos de nós mesmos, cujo maior problema é o de quase nunca terem os mesmos gostos e a mesma direção.

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