E fazemos perguntas.
Na verdade, toda teoria nasce de
alguma pergunta. O que nos faz humanos? O que nos desumaniza? Por que existe o
mal? Perguntas de um tamanho descomunal para as quais faltavam respostas. Daí,
surgiram os mitos originários. Ou seja, o homem começou a jornada
interpretativa de si mesmo dando a mão à religião. É que os impasses e tarefas
superavam as possibilidades inerentes à condição humana, naquele momento.
Mas o dramático é que a religião, em
lugar de oferecer solução à desumanização, pelo contrário e com frequência,
agravou a inumanidade que, com tanta dor, humilhação e sofrimento, vimos
padecendo nos últimos 6 a 7 mil anos.
Foi daí, dessa época, que surgiu o
mito de Caim e Abel, recolhido na tradição judaica. Abel, mesmo, só entra na
história para morrer. Não dá um pio. Entra mudo e sai morto. Mas o mais
significativo nesse mito é que o motivo que desencadeou o enfrentamento
fratricida foi um ato especificamente religioso: a oferenda de um sacrifício
cultual a Deus. Diante da oferta de dois irmãos, Deus reage, esquisitamente,
acolhendo um, rejeitando o outro. No mínimo, suspeito!
Na verdade, o motivo mais provável
daquela violência foi que ali já trocavam farpas e se enfrentavam duas formas
de viver a vida e de entender a religião; formas muito, mas muito
incompatíveis. Vocês se lembram que Abel era pastor e Caim, agricultor? Está
lá, no relato. Essa informação, que passa despercebida a quase todo mundo, é o
dado fundamental. Ela quer dizer que Caim e Abel representavam duas culturas
imensamente diferentes e estranhas entre si: a cultura nômade das tribos de
pastores e a cultura sedentária dos agricultores. Ora, cada uma dessas culturas
tinha seu jeito próprio de entender a vida e a religião, cada uma tinha seu
deus ou seus deuses, e cada uma habitava um universo que lhe era próprio e o
defendia, se fosse preciso, com a morte. Tanto que o resultado, sabemos, acabou
nas páginas policiais da Bíblia.
A religião sempre foi uma das pautas
onde se escreveu a música da existência.
Observem Abel: um pastor nômade. A
religião dos nômades era uma religião de promessa, nunca estática, jamais
vinculada a um lugar, a um templo, a um culto, e que vivia sempre da esperança
de um futuro melhor. Os pastores andavam, e com eles as notícias, as moedas e
as modas transitavam. O pensamento circulava entre os nômades.
Já a religião dos povos sedentários,
ao contrário, estava aprisionada a um lugar, a um templo e a um culto. Seus deuses
eram estáticos, tinham o olhar voltado para o passado, estavam interessados em
manter tradições e posições conquistadas. Caim era isso: um agricultor
sedentário, temeroso por suas terras, suas riquezas e suas mulheres.
Essa tensão entre duas formas de
entender a religião e a vida, foi a raiz do drama interno e doloroso vivido por
tantos povos nômades – entre eles, Israel! –, que se viram instalados, mais
tarde, em algum lugar, que, aliás, tiveram de saquear a outro povo. Caim e Abel
não são pessoas físicas. São personagens. Representam as dúvidas da existência
e o terror de gente como você e eu quando somos chamados a explicar porque
somos o que somos, e aonde nos vai levar o caminho que escolhemos, caso nos
mantenhamos nele.
Caim e Abel somos todos nós. Todos
trazemos lados obscuros, tramas inconfessáveis, medos que nos aterrorizam à
noite, desejos que nos inquietam de dia. Em cada um de nós vive Caim e Abel,
Ismael e Isaac, Esaú e Jacó. Sempre aos pares. Sempre pelo menos dois. Pelo
menos!
Caim e Abel são as partes
desirmanadas, descasaladas, desencontradas de nós mesmos, sobretudo, quando
desejamos algo, e terminamos na direção contrária. Somos assim: pelo menos,
dois. Gêmeos de nós mesmos, cujo maior problema é o de quase nunca terem os
mesmos gostos e a mesma direção.
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