Uma grande disputa na seara da medicina
assola o país: de um lado, o governo central decretando uma política por “mais
médicos”; do outro, a classe médica do país se rebelando contra a política de
atração de profissionais vindos do exterior.
Os médicos nacionais gozam de muito prestígio
e têm muito poder, mas nem sempre foi assim. O Brasil, até o século XIX, era
dotado de muitas formas de curandeirismo. A medicina popular ia desde os pajés,
passando pelos curandeiros, religiões africanas, até a Jesuítica. Já a medicina
universitária tal qual conhecemos hoje, era algo muito distante daquela
realidade. Durante os três primeiros séculos de Brasil, havia um número ínfimo
de formados na medicina universitária. E, mesmo assim, não eram brasileiros,
eram médicos vindos de Portugal. Segundo o filósofo Roberto Machado, eram no
máximo dez profissionais. Portanto, o que estava presente, de forma hegemônica,
era a medicina popular.
A antropóloga Paula Montero, no livro “da
doença à desordem, a magia da Umbanda”, conta que, durante os dois primeiros
séculos de Brasil, eram poucos os chamados cirurgiões-barbeiros e aprendizes de
boticários a desembarcarem no Brasil. E eram, também, pessoas de origem
humildes, degredados e aventureiros, sendo tratados pelos Senhores de Engenhos
como meros serviçais. Para Paula, “o número reduzido de profissionais, o baixo
prestígio social da profissão que facilitava seu acesso a negros e mulatos, a
falta de recursos técnicos e sua extrema simplicidade foram fatores que fizeram
da medicina ibérica uma terapêutica muitas vezes preterida, com relação à
medicina popular”.
Com a vida da família Real para o Brasil,
houve a implantação de faculdades de medicina. Dessa forma, o século XIX marca
para a medicina popular um futuro menos nobre. A medicina universitária
decreta, a partir de então, uma verdadeira “guerra santa” contra a medicina popular.
A terapêutica popular passa, então, a ser taxada de charlatanismo e caso de
polícia.
Ainda segundo Paula, a medicina universitária
vai se impor realmente no Brasil somente a partir do final do século XIX e
início do século XX, com a criação do Instituto Butantã, o de bacteriologia e
pelos resultados no diagnóstico de patologias tropicais. O saneamento e o
tratamento das endemias realizados no Rio de Janeiro, no início do século XX,
pelos sanitaristas Oswaldo Cruz e Vital Brasil, serão um marco na legitimação
da terapêutica universitária como hegemônica.
A partir de então, o status da medicina
universitária voa para cima tal qual um foguete. Isto é um ponto quase
inquestionável. Mas, será que favoreceu toda a sociedade? É aí que mora a
questão maior: a ciência médica aportou-se nos pontos urbanizados e de grande
concentração populacional. Os rincões menos povoados ficaram a ver navios. Mas
por que isso se sucedeu?
Como secretário de saúde numa pequena cidade
do interior de Minas, eu tinha dificuldades em contratar médicos, mesmo com
altos salários, e ficava a me perguntar: por que os médicos resistem tanto a
vir para uma pequena cidade? E não obtinha respostas plausíveis. Anos mais
tarde, o famoso médico Adib Jatene, num programa de televisão, respondeu a esta
questão de forma muito clara. Para ele, os médicos só querem trabalhar onde há
grandes centros de diagnósticos. Daí, a dificuldade em enfrentar pequenas cidades,
que são desprovidas desses centros. Numa palavra, o sujeito forma-se médico,
mas não tem formação suficiente para medicar sem auxílio daqueles diagnósticos
feitos em laboratórios e outros centros de saúde.
A partir daquela entrevista do médico Jatene,
percebi, então, o motivo da predileção dos médicos em ficarem em grandes
centros urbanos, mesmo tendo uma competição maior na profissão com seus pares.
A propósito, um deputado do Pará, em discurso recente na Câmara dos Deputados,
disse que há prefeitos lá no Estado dele que oferecem 20 mil reais por mês ao
médico e ele diz não; oferecem 30 mil reais e ele diz não... Para pensar em ir
para lá, há que se oferecer 40 mil reais mensais ou até mais do que isso. Uma
situação totalmente complicada para o governante, já que em muitos desses
municípios, a principal fonte de arrecadação financeira é o Fundo de
Participação dos Municípios – FPM.
Quando a Presidente Dilma, no auge das
manifestações de rua, lançou o programa “Mais médicos”, houve uma gritaria
geral no reino das ciências médicas. Tarefa ousada do governo central em
enfrentar os “homens de branco”. Um governante não pode só fingir que governa,
há que ter em mente o bem-estar da população e enfrentar certos corporativismos
nefastos. Assim, a roseira dos médicos começou a balançar. Como represália, os
médicos fizeram até passeatas. Os Conselhos Regionais de Medicina – CRMs, que
são muito vagarosos na punição de médicos por acometimento de erros,
alardearam, rapidamente, que serão severos com os médicos estrangeiros. Nessa
disputa, está bem desenhado o caráter dos médicos. Querem o poder pelo poder. O
juramento de Hipócrates é apenas um detalhe na vida desses senhores.
Falar mal de médicos em público é coisa rara.
Quase todo mundo tem medo de médico. Eles detêm o discurso de autoridade na
área da saúde. São os que atestam a vida e a morte. Assim, o médico não pensa
que é Deus... Ele tem certeza disso. Essa visão de mundo do médico é aprovada
por uma população que os trata como doutores, sem eles terem feito doutorado e
, também, os bajula excessivamente.
A vinda de médicos estrangeiros não garante
perda de status para os médicos brasileiros. Contudo, esse fator pode deixá-los
com menos força de barganha no sistema de saúde do país. E, certamente, é isso
que eles temem. Mas, pode ser uma concorrência benéfica para a visão de mundo
dos médicos brasileiros. Noutras palavras, os médicos formados em Cuba saem da
faculdade para enfrentar uma realidade desprovida da parafernália eletrônica de
diagnósticos que existem aqui no Brasil. Talvez, o CRM e o Ministério da
Educação atentem mais para o fato da dependência eletrônica relativa aos
diagnósticos na formação do médico aqui em nosso país.
Nesse embate entre governo e médicos,
apareceu uma infeliz, que se denomina jornalista lá no Rio Grande do Norte,
comparando as médicas vindas de Cuba a empregadas domésticas. Se ela tivesse
seguido a cartilha jornalística e lido sobre a história da medicina, pelo
menos, não cometeria em rede social tamanha barbaridade. Embora ela tenha
pedido desculpas posteriormente, ficou a marca de uma sociedade que concebe o
médico como alto, branco e aristocrático. Mas esse fator é mesmo realidade no
Brasil. Nas piores faculdades de medicina, o valor da mensalidade é sempre um
acinte à maioria do povo brasileiro. Daí, a seleção das pessoas aristocráticas
para serem médicas.
Para um país de dimensão continental, há
necessidade de uma medicina mais próxima do cidadão, ainda que seja nos confins
da Amazônia. Se os médicos brasileiros resistem a enfrentar essa questão; se há
possibilidade de trazer médicos de outros países dispostos a se embrenharem
sertão afora; o caminho da equidade na saúde estará mais no horizonte da
população menos favorecida pela terapêutica acadêmica. Avante!
luizfernandoecia.blogspot.com
2 comentários:
Quando FHC do PSDB era presidente, ele fez um programa para trazer médicos de Cuba. Nesta época a revista Veja fez uma matéria com total apoio ao programa. Agora...
Agora a Veja é totalmente contra. Pq essa mudança? Seria pelo fato do atual Ministro da Saúde ser o futuro cadidato do PT ao governo de São Paulo?
Então o problema não é o programa "Mais médicos", e sim quem vai ser o próximo governador de SP.
E nessa briguinha nojenta entre os partidos, que só se preocupam em perpetuarem-se no poder (PSDB em SP e o PT em Brasilia), é o povo que se fod....
Sou médico, e estou ciente de que não é preciso ir longe para perceber o problema do interior do Brasil. Pense em pequenas cidades do sul de Minas Gerais. NÃO HÁ ESTRUTURA HOSPITALAR PARA DIAGNÓSTICO E TERAPÊUTICA para casos POUCO mais COMPLICADOS!!! Sim, eu trabalhei nesses lugares e vi, não foi alguém que me disse. Trabalhar nesses lugares é quase voltar ao curandeirismo...e se os estrangeiros são bons nisso, a escolha do governo foi acertada. Do contrário, logo se mostrará um fracasso. E quanto ao ex-ministro da saúde: onde se faz cirurgia cardíaca hoje sem auxílio de exames complementares, centro cirúrgico especializado, circulação extra-corpórea, pessoal treinado, UTI, etc??? Ou vamos encarar os feitos do Dr Hill no início do século passado (rafia cardíaca em uma mesa de cozinha sob a luz de velas)??? Por fim, criou-se um gosto de falar mal dos médicos. Profissionais ruins existem em todas as áreas. Assim, não devemos generalizar. Lembrando que serão os médicos que assinarão sua certidão de nascimento e seu atestado de óbito e, digo mais, abdicarão de muitos momentos com a família, amigos, lazer e colocarão suas próprias vidas em risco para restaurar a sua.
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