No extremo de Roraima, o extremo-extremo do país, ainda há tribos indígenas vivendo em moldes pré-colombianos. Só pra encurtar a conversa, todos os índios moram juntos em uma grande oca. O limite separador de cada célula familiar é a incipiente fogueira que arde em frente a cada “lar”, onde cada grupo familiar prepara separadamente o próprio alimento. (Aliás, fogo e lar são sinônimos: sinta a palavra “lareira”. Aliás, de novo, não preciso dizer que o ambiente interno tem a cara de rua em que passa o caminhão de fumaça mata-mosquito.) Os índios dormem em redes e praticam sexo ali mesmo, sem os preparativos, os antecedentes e os preparatórios. Apenas praticam sexo e está bom e é só. Porém, quando querem “namorar”, aí, a coisa muda de figura: eles fogem para o mato. É isso mesmo, fogem. Sem a fuga, que graça teria? Sexo por sexo, fazem ali mesmo, na “rede de casal”. Observe que, mesmo à beira do Rio Branco, nos cafundós do Brasil, entre os índios, sexo é uma coisa, e sexo com namoro é outra coisa, totalmente diferente. Entre uma e outra, existe a fuga, o mato e a privacidade.
A autora Elisabeth Gilbert, no livro Comprometida, tem um jeito deliciosamente próprio de mostrar que a privacidade não é assunto pra conversar na sala; o próprio tema “privacidade” já pertence à esfera privada. Os filósofos haviam entendido isso há muito tempo quando concluíram que em toda cultura humana (perdoem-me a redundância) é justamente do muro que separa o público-privado que emerge a própria civilização. Mais. A percepção que os filósofos têm do mundo ocidental é a de que a cultura ocidental se ergueu, apoiando-se em duas visões de mundo, ao que tudo indica, rivais: a grega e a hebraica, o público e o privado. O lado que adotarmos com mais intensidade determinará em boa medida como vemos e vivemos a vida. O que distancia uma da outra é o modo de cada uma operar, justamente, a questão da privacidade.
Dos gregos, herdamos as idéias do humanismo secular e da inviolabilidade do indivíduo. Os gregos nos legaram noções como democracia, igualdade, liberdade pessoal, razão científica, liberdade intelectual, abertura de pensamento e o que hoje chamamos de “multiculturalismo”. A noção grega da vida é urbana, sofisticada, investigativa, com espaço garantido para a dúvida e o debate. Numa palavra, aberta.
Do outro lado, há o modo hebraico de ver o mundo. Quando diz “hebraico”, a autora não se refere especificamente aos princípios do judaísmo. Há muitos judeus contemporâneos que são gregos, enquanto a maioria dos cristãos fundamentalistas é profundamente hebraica. “Hebraico”, no uso que filosofia faz da palavra, é a cosmovisão que tem como referências o tribalismo, a fé, a obediência e o respeito. O credo hebraico se baseia no clã, patriarcal, autoritário, moralista, ritualista e instintivamente desconfiado de estranhos. O pano de fundo do pensamento hebraico é maniqueísta: vê o mundo como um joguete entre o bem e o mal, com Deus sempre firmemente do lado do bem, que é, claro, o “nosso” lado. As ações humanas são certas ou erradas. Não há área cinzenta. O coletivo é mais importante do que o individual, a moralidade é mais importante do que a satisfação e qualquer promessa ou voto é sempre inviolável. A noção de vida hebraica é fechada.
A cultura ocidental, que brotou dessas duas visões de mundo, sempre quis conciliar as duas e nunca conseguiu por uma simples e barata razão: elas são inconciliáveis. Não obstante, nossa sociedade tenta ser um amálgama desse emaranhado greco-hebraico, como se fosse possível colocar uma dentro da outra. Nosso código jurídico é quase todo grego; nosso código moral, quase todo hebraico. Não temos nenhum modo de pensar a independência e singularidade do sujeito que não seja grego. Não temos nenhum modo de pensar a retidão de caráter que não seja hebraico. Nossa noção de justiça é grega. Nossa noção de justeza é hebraica. E vai por aí, não deixando nenhuma lacuna humana que não seja preenchida com a especificidade de cada sistema.
Mas nenhum canto humano denuncia tanto a inconciliável junção desses pensamentos como, por exemplo, o amor. Enquanto hebraicos acreditamos que o amor que conduz ao casamento é um voto que jamais (jamais!) pode ser rompido. Enquanto gregos, sabemos que o sujeito pode fazer opções ao longo da vida e que essas opções mudam, simplesmente, porque a vida, sem pedir licença, também muda.
O pior (ou melhor!) é que as duas idéias podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. O melhor (ou pior!) é que podemos transitar entre as duas, mesmo correndo o risco de pular daqui pra lá e de lá pra cá. A visão hebraica – ou bíblico/moral – se baseia na devoção ao trans-imanente. Acreditar nisso, piamente, é fundamental, porque só isso confere a garantia de que alguns precisam para tocar a vida e seguir em frente. A visão grega – ou ético/filosófica – se baseia também na devoção, mas ao imanente-trans, feito de investigação, beleza e um intocável respeito à expressão pessoal. E também acreditamos plenamente nisso. Talvez, não piamente, mas decerto plenamente. A urgência do “piamente” se transforma quando não há tantas urgências assim, ou quando o pensamento consegue dar conta delas.
Continuando a falar de amor, o amante grego perfeito é erótico, o amante hebraico perfeito é fiel. A paixão é grega, a fidelidade é hebraica. Enquanto gregos, não suportamos sacrificar o eu no altar da tradição: isso nos soa opressor e apavorante. Enquanto hebraicos, não cogitamos sacrificar a tradição no altar do eu: isso é praticamente sacrílego. Em outros termos, a questão pode ser dita assim. Você pode se oferecer como pasto ao grande Outro (Você não se casou! Não vai casar? Não vai ter filho? Um só? Não vai trocar o apartamento? E a casa da praia? E o carro? Um só? E a escola do filho? A faculdade? A pós-pós-pós?) Ou pode dizer a esse sujeito: com sua licença, vai cuidar da sua vida!
No que diga respeito ao meio social, quando o amor se torna casamento, a situação se complica um pouco mais porque o casamento não é uma promessa feita a outro indivíduo: essa parte é fácil. O casamento é uma promessa feita a outra promessa. Não se trata mais da questão especular da paixão. Não há mais espelhos, pelo menos, não é isso que interessa ao meio social. Ao meio social, interessa que o novo casal seja feliz e que, se possível, cause o menos problema possível. Dessa forma, há quem fique casado para sempre não necessariamente por amar o cônjuge, mas por amor aos próprios princípios que são, quase sempre, os do próprio meio. Essas pessoas levarão para o túmulo uma total lealdade, mesmo a alguém que detestaram a vida inteira, apenas (e a palavra certa não é, bem, “apenas”, certo?) porque prometeram algo a alguém diante de alguém, de Alguém, ou de alguns, e não se reconheceriam mais, caso quebrassem a promessa.
Chegamos à questão do casamento, da privacidade e da intimidade de dois seres que se elegeram mutuamente. Comecei essa arenga toda ao redor da questão do amor, mas eu não via a hora era de chegar aqui: na inviolável, irreprimível e desconcertante parceria humana.
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