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27 de maio de 2011

ERA APENAS UMA COROA DE LATÃO. MAS COMO BRILHAVA! - Renato Lôbo

Ainda criança, o mês de maio era tão frio que, quando a gente soprava, o ar virava fumaça. Frio que doía que tão frio! Mas havia festa, missa e coroação. E quem não ia, com frio e tudo, à noite, avenida acima, só pra ver a hora em que os sinos tocassem e pétalas de flor voassem aos jorros lá de cima do altar. A gente assistia com cara de anjo. E como de anjo não tinha nada, pelo menos, era assim que parecia.

O santuário ficava num canto da cidade, bem distante. Naquela época, tudo era distante. E quando se entrava era como entrar não no outro canto, mas num outro mundo. Nas tábuas do forro, de fora afora – e, por milagre, ainda está lá – a pintura da Imaculada dominava, rodeada de anjos, co’a lua sob os pés e a inconfundível coroa de doze estrelas à cabeça. E eu que vivia longe da minha casa, era para aqueles seres alados que eu olhava, sei lá com que esperança. Só sei que um deles, bem gorducho, me tomava pela mão e me levava – seria sonho? – para junto deles, os nascidos da mesma mãe e, eventualmente, do mesmo pai, e que de anjos também não tinham nada.

Na parede do fundo, num altar de madeira, esculpido inteiro em alto relevo, longas duas escadas conduziam ao trono, de onde dezenas de pequenos anjos, subidos por ela acima, desajeitados – como anjos decerto não devem ser – pisando na barra das túnicas. Em cada par de mãos de cada ser vestido de anjo um pratinho de pétalas de rosa. A gente prendia o fôlego. Será que chegariam lá em cima? Será que iam despencar de lá? E se caíssem, sairiam voando?

Os anjos, aliás, anjas (todas eram meninas) entravam cantando pelo centro da nave, descuidadas, espalhando sorrisos e a graça da infância, com as pétalas caindo dos pratinhos, como se o chão da nave fosse feito de céu. Uma fila interminável. Mais de cinqüenta? Mais de cem? Não faço a menor idéia, mesmo porque qualquer idéia que se faça hoje não é mais a mesma que se fazia lá. É que, naquela época, toda a corte celeste estava reunida ali, naquela noite, naquela festa, naquele frio e naquele santuário num canto isolado do mundo.

Se você, na sua infância, nunca viu uma coroação de santa, precisa exigir indenização à vida. As coroações eram mais que acontecimentos. Ah! Eu nem sei o que eram! Em túnicas brancas e longas asas, meninas louras e morenas, rodopiavam nos sonhos que só se sonha quando ainda é permitido sonhar, flutuando no altar, ao redor da Rainha. Curioso é que a gente sabia que eram as mesmas meninas das brincadeiras de rua. Mas, naquela hora, naquele lugar, daquele jeito, eram anjos, digo anjas, e se comportavam como a nobreza exige.

Daí vinha a coroação. Cantava-se, cantava-se, cantava-se... Cantava-se mais um bocadinho. Mas no momento em que uma delas depositava o cetro nas mãos da imagem, a apoteose havia começado. O coração batia a mil. Erguia-se a fumaça branca do incenso, coroinhas alvoroçados caçavam campainhas e outros se dependuravam na corda do sino. Bem-be-le-lém.

Então é que vinha. Duas meninas, uma a cada lado da Rainha, erguiam as mãos. E o que a gente via não dá pra descrever. Inefável. Indizível. (...) Era a própria transcendência em ato, coisa que jamais se iria ver de novo, vida a dentro: uma pequena coroa erguida sobre a imagem, dela ainda desnudada. Era apenas uma coroa de latão. Mas como brilhava! Se alguma coisa brilhou nessa vida, se algo conseguiu captar o brilho que a vida, por si só, não tem, se algo ofuscou com a luz do mistério, aquela mesma que justifica a banalidade fosca do dia-a-dia, ali se presentificava. E era apenas uma coroa de latão. Mas, meu Deus, como brilhava!

E os anjos cantavam. E a coroa pairada no ar, do ar descia, lentamente, milímetro a milímetro, se outra medida não houver, até repousar numa pequena cabeça virgem coberta de véu. E, aí, no frisson daquele momento, ela se tornava Rainha, outra vez.

Súbito silêncio de ansiedade presa. Escutava-se até a respiração do vizinho. E, de repente, música, festa, flores lançadas do céu sobre o trono da Rainha. Fumaça de incenso, subindo perfumada, pra se misturar às pétalas, no ar. E uma dezena de campainhas respondendo à conversa dos sinos da torre. De mais longe, vinha o som dos sinos da matriz, majestosa, em saudação ao pequeno santuário da Rainha coroada e à festa que lá dentro acontecia. Foguetes? Banda? E tem festa mineira sem foguete e banda? E aplausos, e os coroinhas de um lado pra outro de batinas vermelhas. E a gente? Ô meu Deus! Feliz que não havia quantia!

Pode anotar aí: era apenas uma coroa de latão. Mas, como brilhava!

Quando tudo terminava, na volta pra casa, no frio da noite, na névoa caindo por sobre a cidade, o coração ia seguro de que, em qualquer dificuldade da vida, as coroações teriam o poder de nos fazer sobreviver. Mágicas, místicas, milagrosas.

Passou-se o tempo. Que pena! Cresci.

Já não acredito tanto no poder terapêutico das coroações. Não creio como antes que elas possam resolver problemas. Que bom se pudessem! Que bom se pudesse estar lá, outra vez, no frio de maio, voltando pelas ruas úmidas de névoa, dormindo acordado com a música dos anjos. Que bobagem a gente faz da vida! A gente cresce. Encaixota a inocência, o dom do encantamento e o melhor que havia em si.

Mas nunca, inteiramente. Sempre sobra solitário um espaço íntimo, por menor que seja, de onde o encanto sobrevivente. Nesse lugar, ainda é possível “enxergar” os cantos de meninas-anjas, “ouvir” pétalas dançando na fumaça do incenso, rodopiar nas mesmas cordas dos sinos de antes. (Hoje, nem sino existe mais e quanto existe falta-lhe a corda.) A partir daquele tempo mítico, a névoa úmida que envolve a existência parece menos fria do que realmente é. Há um canto, dentro de mim, de onde ainda é possível enxergar o mesmo santuário no canto da cidade pequena, e suspirar imaginando que ali exista quem ainda deva ser coroada.

Nesse lugar, onde nunca crescemos e de onde bravamente relutamos sair, somos preservados dos mistérios e da mesmice da vida adulta, do terror dos noticiários, do medo que nos assombra. Ali somos conduzidos de volta ao calor de um colo privilegiado que nos faça adormecer. Pode ter muitos nomes e rostos diferentes. No fim, todos eles cabem e se cruzam numa praça só, onde fica o Santuário da memória.

Toda vez que maio chega, onde quer que esteja, volto ao pequeno santuário do canto da cidade, e me ponho a ouvir anjos e sinos, sentir flores e incenso. Sempre que ouço algum canto semelhante ao que lá se ouvia, me pego pensando se ainda existe a mesma coroa cingindo a mesma testa e se ela ainda consegue reproduzir a mesma alegria de antes. Caso haja, também haverá quem continue acreditando em tudo quanto ela signifique. E é muito. E é muito.

Era apenas uma coroa de latão. Eu sei. Mas como brilhava!

3 comentários:

Anônimo disse...

Realmente dá saudades! A sensação era essa mesmo! E pra completar, quem participava da coroação ganhava, no final, um pirulito de galinho. Outra lembrança inesquecível!

Anônimo disse...

Que saudades Renato! Viagem no tempo! E como curiosidade: na nossa coroação, minha e da Fernanda, minha asa de anjo pegou fogo! Encostei nas velinhas do altar! Ah! Ah! Ah!
Fátima da Teresa Moraes!

Anônimo disse...

E havia a hora, sublime instante, quando uma menina-anjo esticava a coroa pra outra menina-anjo, do outro lado, beijar. E aí, a coroa voltava, e a menina-anjo do lado de cá, a beijava, também. E aí, as duas erguiam a coroa sobre a cabeça apenas de véu azul-anil, e a coroa vinha descendo.. descendo... até pousar suavemente. E aí, o Céu tocava a Terra. Gente, pra tudo tem credicard, mas isso não tem preço! - Renato Lôbo

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