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13 de junho de 2013

BESOURO - Renato Lôbo

Não sabendo que era impossível...


A gente nasce no meio de um campo onde se joga alguma coisa. Nasce dando e levando pernada, às vezes, quebra a perna, se esfola, briga, xinga, bate, apanha. A gente nasce no meio de um campo de luta de forças antagônicas: é o filho que vai mal lá fora, é o casamento que não vai bem aqui dentro, são as contas a pagar, a casa que precisa de pintura nova, o chefe inoportuno que insiste em ser ainda mais inoportuno, o primo inconveniente do irmão do cônjuge (primo do cunhado!) que vem almoçar todo final de semana... é pau, é pedra, é o fim do caminho... é a lama, é a lama...


É o salve-se quem puder.


Por muito tempo, você fica aí, onde nasceu, no meio de um campo devastado por micros e macros lutas diárias, simples-mente, tentando sobreviver pelo maior número de anos que for possível. Leva vaias, mas não sai dali. É a lama, é a lama...


Até que um dia, você se dá conta de que não precisa ficar ali, onde a vida o colocou pelo simples nascimento. Você não é herdeiro de coroa nenhuma. Não faz parte de realeza alguma. Não precisa, desgraçadamente, ficar onde nasceu só porque nasceu.


Aí, você sai do campo, e se senta no primeiro degrau da ar-quibancada. Já subiu um degrau. Ó.


Mesmo assim a vista ainda é pequena. Os xingamentos che-gam de todo lado, a todo instante, você corre o risco de entrar de novo no campo ou porque é chamado ou porque não con-segue ver você mesmo onde ainda se acha que está. Per-dendo. Você tenta interferir e sai ferido. Não consegue não meter seu dedo na ferida dos outros. A pretexto de um cami-nhão de boas intenções, geralmente, você perde a direção e é atropelado justamente pelo caminhão que tentava conduzir. É a lama, é a lama...


Só aos poucos, e não tem jeito, não, é só aos poucos, você começa a entender que não é tão necessário ficar no primeiro degrau da arquibancada, da mesma forma como se deu conta de que continuar no meio do campo era pura insanidade. Você começa a entender o que há de mais chic nessa vida pra ser entendido: você mesmo não é tão necessário assim, como se julgava.


Então, daí pra frente, o seu filho pode decidir o emprego e até o sexo que deseja pra si? Então, sua filha pode decidir se vai morar sozinha ou acompanhada, bem sozinha ou mal acom-panhada? Então, sua esposa pode querer experimentar o que só uma maravilhosa balconista de loja no shopping pode co-nhecer no quesito cosmovisão? Então, seu marido pode mu-dar de emprego, ganhar menos, diminuir o tal padrão de vida? Pode também diminuir o colesterol e as chances de enfarto?


Como isso demora! Fomos todos tartarugas em outra encar-nação.


Mas você vai subindo, degrau por degrau dessa arquibancada. Você nem vê que está subindo, mas está. Quando vê, olha aí, já está quase lá. À medida que sobe, percebe que a visão amplia. O campo vai ficando maior, sim, porque quando você estava lá, bem no meio dele, você só via uma pequena parte: a parte que seus pés ocupavam. Você tomava a parte pelo todo. Não sabia por que, mas uma sensação de aperto, angústia, insuficiência, inaptidão, incompetência, vazio, e tanta coisa, invadia você naquela situação, e não sabia se queria sair dali, e nem sabia que queria sair dali. Só ficava porque não sabia onde ficava a saída, e nunca havia experimentado a porta. É a lama, é a lama...


Tem uma coisa que mais tarde você vai dizer quando se lem-brar disso: Se tivessem me avisado...


Nada! Se tivesse avisado, você teria virado a cara e feito um inimigo. Sabe aquela história de quando o rei recebia uma mensagem desagradável e matava o mensageiro? Pois é! Essas histórias não nascem do nada. E eu não sou nem besta de avisar alguém assim. Às vezes, penso até em dizer: Cuidado! É a lama, é a lama! Mas, aí...


E, então, de degrau, você chega ao último e a visão é com-pletamente diferente. Ainda lá, se ouvem os xingamentos do campo. Mesmo lá, você corre o risco de receber na cabeça as latas de cerveja arremessadas. De alguma forma, lá, você ainda faz parte daquele contingente insano.


No entanto, da última arquibancada, ainda assistindo o jogo feroz da sobrevivência, de uma coisa você já sabe: você não participa mais nem quer nem precisa nem vai. Porque já en-tende tudo o que se passa. Entende porque você mesmo passou. Só o passamento traz entendimento.


Só então pode dizer que a visão é outra. Só então pode dizer que enxerga.


A gente gosta de dar nome às coisas; parece que elas ficam mais nossas depois de nomeadas. Caso você queira dar um nome a esse entendimento, sugiro que você o chame de “transcendência”. Mas, não tem nada a ver com religião. Essa ponte entre o-cá-e-o-ainda-cá-mas-diferente, é tão diferente e torna tudo tão diferente, que você pode chamá-la de trans-cendência. E ela atende. Desde que seja só isso: que seja aquilo que transcenda para-além-do-simplesmente-aqui-e-agora-banal-da-vida.


Cabe bem, aqui, a história batida do besouro que não tendo a menor capacidade aerodinâmica, mas não sabendo disso, sai por aí e voa. Ta certo que bate, cai de costas, dá um trabalhão insano, mas vira, levanta e voa de novo. Até bater de novo, e cair de novo, e...


Cabe bem, aqui, a frase também batida do “Não sabendo que era impossível foi lá e fez”. Se você pensar assim, mesmo pensando assim, ainda que pensando assim, suba um degrau da arquibancada, ou simplesmente saia do campo. Se ainda não der pra voar, pelo menos, desvire-se do tombo que levou. E se levante.


E, assim que der, voe.

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