Cruzei
a linha por onde passam os trens de carga da região nordeste do Estado de São
Paulo, em direção ao porto de Santos. Dona Maria, 75 anos, mulata, de chinelos
nos pés e sorriso nos lábios, acenou-me em frente ao portão de bambu. “Que bom
que você veio, padre”. “O brigado pelo convite, dona Maria. Uma das coisas que
mais gosto é tomar uma café preparado por mãos mineiras”. Ela me abraçou
demoradamente.
Dona Maria, quando criança, morava em
Brazópolis, no sul de Minas Gerais. Tem uma memória de ouro! Dentre tantas
curiosidades que me contou, uma me faz chorar: “A gente sofre muito nesta vida,
padre. Quando eu tinha cinco anos, lá na roça, passávamos dificuldades. Meu pai
trabalhava de dia, para comer à noite. Quando ele voltava para casa, ficava
quase sempre calado”.
De repente, como eu não desgrudava meus
olhos dos seus, notei que seu rosto mudara de feição. A tristeza tornara-se
visível. “Um dia” – continuou ela – cheguei da escola, logo após o almoço.
Estava com muita fome. Deixei o embornal em cima da máquina de costura e fui
direto para a cozinha. Minha mãe estava chorando, com as mãos no rosto. Meu pai
havia nos deixado... não sabia o porquê”.
Apertei suas mãos. Ela apertou as
minhas. “Não sabia disso, dona Maria”. O silêncio só foi interrompido quando
um galo cantou no quintal. “Mas, Deus é maravilhoso com a gente!, exclamou.
“Perdemos um pai, por ele nunca mais voltou, mas ganhamos outro: o nosso avô,
Manoel Felício, pai de minha mãe. Ele foi nos consolar e passou a nos tratar
como filhos. Meu avô-pai era muito religioso. Não faltava na missa nem que
chovesse canivete”, contou, enquanto ria.
“Tenho vivas, em minhas memórias, as
manhãs de domingo. O sítio onde morávamos ficava a mais ou menos oito
quilômetros da cidadezinha. Ele ia até o quarto, quando ainda estava escuro, e
chamava a gente, um por um com um beijo no rosto. Minha mãe coava o café e
fervia o leite, enquanto meu avô arreava o burro, amarrando nele dois balaios,
um de cada lado. Depois colocava a gente nos balaios. Eu ia dentro de um com
meu irmãozinho mais novo; no outro minhas duas irmãzinhas. Vô Manoel ia puxando
as rédeas do burrinho até chegar à igreja de São Caetano. Amarrava-o no tronco
de uma árvore, na pracinha. Assistíamos à missa igual a anjinhos. Se a gente
desse um ‘piu’, era bronca na certa. Depois da missa ele nos levava até o padre
para nos benzer. Em seguida ia para a venda, do outro lado da praça, e comprava
alguns doces. Logo, estávamos novamente dentro dos balaios, abençoados e
felizes. Sinto saudade. Aquela saudade que faz bem ao coração”.
Enquanto contava a sua história, minha
imaginação me levou à Terra Santa, quando José conduzia o burrinho pelo deserto
da Judeia, rumo ao templo de Jerusalém. No lombo do animal estava Maria,
segurando nos seus braços, o menino Jesus.
Como a Sagrada Família, dona Maria,
Manoel Felício e as outras crianças enfrentavam a poeira da estrada pela fé.
Por isso não foram vencidos pelo abandono, pois Deus os segurava nos seus
braços de Pai.
Revista Ave Maria –
Edição de maio/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada por dar a sua opinião.
Elogie, critique, mas faça isso com educação.
- Comentário com palavras de baixo calão será excluído.