A prefeitura de
Piancogno, como parte das comemorações de seu cinquentenário, promoveu a “1ª Edição do Prêmio Literário”, da
qual Juliana e mais centenas de pessoas da comunidade participaram. O trabalho
de Juliana ficou entre os 6 melhores e no julgamento final foi premiada com o
1º Lugar.
Este trabalho, juntamente
com outros, foram enterrados dentro de uma caixa “A Custódia dos Pensamentos”,
que será aberta daqui a 50 anos, nas comemorações do centenário da cidade.
Juliana é filha da Brazopolense Marlene Renó
Serpa de Carvalho e Marcelo Carvalho e neta de nosso ex-prefeito Nóe Pereira
Serpa.
Parabéns, Juliana!
PRÊMIO LITERÁRIO
Contando Piancogno
I EDIÇÃO 2013
DE VOLTA ÀS ORIGENS
Os primeiros raios do sol desenham linhas
pontilhadas na parede do quarto, é hora de levantar. Abro a janela e o cheiro
de terra e grama molhadas invade todo o quarto, respiro fundo e encho os
pulmões, aquele aroma é familiar, típico de quando choveu durante toda a noite.
Lá fora o céu é límpido e azul, contrasta com a neve na ponta das montanhas já
verdejantes; permaneço aqui, parado, a olhar aquele panorama que acompanha as
minhas recordações de infância. Assim começa a sexta-feira do dia 27 de abril
de 2063 e se apresenta repleta de emoções.
Passaram-se poucos
dias desde quando recebi aquele e-mail, um convite à 72ª edição da Feira das
Flores de Piancogno, uma manifestação que ocorre anualmente no lugar onde vivi
minha juventude; naquela ocasião seria aberta “A Custódia dos Pensamentos”,
coincidentemente com as comemorações do centenário da cidade. Passaram-se
tantos anos e ainda me lembro muito bem do dia em que a professora nos disse
para prepararmos alguns depoimentos e quaisquer outras lembranças sobre nossa
cidade para serem enterrados dentro de uma caixa, que seria aberta depois de
cinquenta anos. Estávamos entusiasmados e talvez não nos dávamos realmente
conta da importância de tal evento, para nós era somente uma ocasião para
imaginar aquele futuro tão longe. Isto me trouxe aqui hoje, depois de uma longa
viagem de avião.
O estômago reclama e
me desperta de minhas lembranças. Escolhi hospedar-me em uma das belas casas
históricas usadas como hotel no centro da cidade; estão na moda e dizem que
valorizam o território e as tradições locais. Na sala principal, algumas
famílias de turistas saboreiam a primeira refeição do dia: o aroma intenso do
café me faz voltar aos tempos em que mamãe nos acordava para ir à escola. Sobre
minha mesa, ao lado da xícara, uma cestinha bem vistosa me chama a atenção:
fatias de pão com açúcar, um doce... sim, noto com surpresa que se trata da
spongada! Há anos não a comia.
Antes de sair, passo
o polegar no escâner e um bip confirma os meus dados e o pagamento. Hoje é tudo
assim, sem dinheiro e nem cartões de crédito, verificam a sua identidade, o seu
DNA e registram as compras que você faz; é comodo, mas não há mais contato
humano e a possibilidade de negociar com o vendedor. Digo um até logo ao
computador como se fosse uma pessoa e saio... ah! Frescor da manhã e os
primeiros rumores da Feira das Flores.
A Feira cresceu no
decorrer dos anos: agora começa desde a Igreja de São Vítor e Sagrada Família e
vai até Cogno. Pensar que há cinquenta anos chegava até o campo poliesportivo,
percebe-se que o sucesso de hoje se deve muito ao envolvimento de todos os
moradores na organização do evento. Dois trenzinhos coloridos e modernos fazem
um passeio turístico de Piamborno a Cogno carregados de passageiros, decido
subir em um deles para ver o que mudou na cidade e embarcar em uma viagem de
volta ao passado, uma espécie de túnel do tempo. Minha família foi uma das
tantas de Piancogno que se viram obrigadas a emigrar; a grande crise do novo
milênio colocou em dificuldade Estados fortes e potentes por dez anos, imaginem
o que não fez na Itália.
Dirijo-me à parada da
igreja para esperar um dos dois trenzinhos. O centro juvenil paroquial cresceu,
há um grande movimento de pessoas atarefadas com os últimos preparativos para
esta noite e me dou conta que nem todos são camunos, mas uma mistura de raças
provenientes de vários países que enriqueceram a cultura e a sociedade locais.
Do outro lado da rua, onde antes havia uma concessionária, leio Universidade de
Valle Camonica – Faculdade de Turismo e vejo que finalmente realizaram aquele
projeto para valorizar nossa região e suas belezas; os numerosos turistas são o
resultado de tudo isso. Muitas coisas mudaram nestes anos e agora nosso vale
não pertence mais à província de Bréscia. Valle Camonica província!, eram os
protestos premonitórios que líamos nos muros e viadutos das estradas. Um
governo diferente e contra a tendência da maioria em abolir as províncias que
acabaram por enriquecer a região, uma espécie de federalismo.
O trenzinho está
chegando e tomo meu lugar ao lado de um jovem casal que conversa alegremente,
falam um dialeto camuno mais jovial e fluente. Já no meu tempo, falava-se de
introduzir os vários dialetos presentes na Itália nas escolas a fim de
valorizar e preservar nossa. Próxima estação: Museu Sacro de São Vítor.
Enquanto o rapaz tira uma foto em 3D, a moça lê a descrição na guia eletrônica:
“A antiga igreja dedicada a São Vitório e reconstruída no século XVII, preserva
hoje as obras sacras dos mais ilustres artistas da Valle Camonica”. Mais além,
algumas pessoas percorrem uma trilha ao longo de uma cachoeira que borrifa água
sobre os pedestres, um verdadeiro alívio nos dias quentes: é o velho Dávine,
que agora pode ser percorrido por todo seu trajeto até a nascente.
O trem segue seu
percurso, toma a Rua Nacional e para para pegar mais passageiros. Vejo a
Avenida Estação e as escolas que frequentei, tempos descontraídos, quando nossa
única preocupação era levar boas notas para casa! Era tão divertido brincar com
meus amigos naquele parquinho ao lado da escola... será que ainda existe aquela
árvore grande que ficava com as folhas amarelas no outono? A estação
ferroviária ainda tem a característica cor vermelha, mas agora é mais ampla e
moderna. Dois trens estão parados nos trilhos e em um painel eletrônico aparece
o seguinte aviso: Destino Bréscia, plataforma 1. Destino Ponte di Legno,
plataforma 2; agora a ferrovia vai além de Edolo.
O tour recomeça e
vejo flores em toda parte: uma explosão de cores nas varandas e jardins das
casas, nas barraquinhas, nos vasos que decoram a rua e as lojas. As cores
ganham ainda mais vida com as vozes das pessoas que passeiam, com as risadas
das crianças que se divertem brincando com os hologramas e com os concertos
musicais. Interessante ver que o artesanato ainda é presente aqui, uma
atividade passada de geração a geração; ainda são usados materiais como
madeira, ferro e vidro, apesar do largo uso da fibra de carbono e do
policarbonato.
Próxima estação:
Praça do Município. O antigo palácio agora é maior e mais moderno, somente o
relógio continua no seu lugar, assim como o chafariz no centro da praça
circundado por um pequeno canteiro florido; ao lado do paço municipal há ainda
a antiga casa de repouso e seu parquinho, embora esteja mais parecido a um spa
(são os benefícios da tecnologia). Do outro lado, bancos e escritórios
substituíram algumas casas. A Praça Alpinos abriga um novo centro
multicultural, onde um grande banco de dados recolhe todo o conhecimento das
culturas de fora e locais. A Praça Mártires de Rua Fani está ainda mais bonita,
graças a seu parque florido e cuidado com perfeição que convida todos a relaxar
nos cômodos bancos ao longo da praça e escutar o som de fundo da água que
escorre no antigo chafariz.
Todas as casas e
prédios foram reformados; os mais antigos foram preservados, enquanto os mais
novos espelham o gosto elegante e curvilíneo do estilo pós-contemporâneo. É o
reflexo do crescimento econômico, que permitiu o retorno de um bem-estar às
famílias na Itália, uma espécie de segunda Belle Époque. Percebo com grande
entusiasmo que, agora, os piancogneses falam bem outras línguas e não hesitam
em dar informações corretas aos vários turistas presentes na feira.
Desço na estação do
antigo campo poliesportivo, onde sempre íamos brincar. Vejo diante de mim hoje
um verdadeiro centro esportivo moderno e multifuncional; decido entrar e me
alegro em ver a grande fila de bicicletas, finalmente as pessoas optaram pelo uso
delas: não poluem, são práticas e leves e ajudam a manter o corpo saudável. De
fato, o constante aumento do custo do combustível, o sedentarismo e a poluição
obrigaram os governos de toda a Europa a incentivar o esporte e os meios de
transporte alternativos. Na parte coberta há 5 quadras poliesportivas; em uma
delas, um time de meninas treina basquete: pelas incitações do técnico,
restam-lhe poucos dias para um torneio europeu que será realizado bem aqui. É
quase irreconhecível o velho ginásio poliesportivo! Do outro lado do vidro vejo
duas piscinas: uma semi olímpica e uma outra para a hidroginástica. Uma placa
na minha frente sinaliza o campo de futebol e vou lá ver como está agora:
naquela grama muito bem cuidada são realizados importantes jogos regionais.
O próximo trenzinho
está chegando, é melhor me apressar, já que se dirige a Cogno. Enquanto
passamos pelas barraquinhas, noto uma grande fila de videiras sobre as
montanhas. Os cartazes pela rua indicam as várias empresas produtoras e
reconheço alguns nomes que li em alguma adega: são os grandes exportadores do
vinho piancognês na América, Ásia e Oceania. Passamos em frente à Igreja da
Imaculada Conceição – Santo Eustáquio, que remonta aos primeiros anos do século
XVIII; nós a chamamos “A Igrejinha” por ser pequena. Foi muito bem conservada,
sempre graciosa, e lembra muito a intimidade das igrejas campestres.
Percorremos aquela
que antes era a rotatória da Rodovia Estadual 42 e que dividia em duas partes
os distritos de Piamborno e Cogno. Hoje, um túnel liga o antigo trevo à via
expressa, após as mudanças necessárias para dar lugar ao segundo trilho da
ferrovia... finalmente são feitas muito mais viagens diárias de trens, alguns o
apelidaram de metrô camuno. Cogno, então, agora está mais unido a Piamborno,
seja fisicamente que em relação à comunidade. Os dois distritos agora podem
compartilhar e colaborar juntos para o sucesso da Feira das Flores. Pouco mais
adiante vejo a Estrada do Beato e uma funicular que agora nos leva até o
distrito de Annunciata; com uma inclinação de arrepiar, uma cabine sobe pela
montanha e nos oferece um panorama espetacular. Lá em cima, os frades
franciscanos guardam pelo silêncio e pela oração do convento que do alto
protege a Valle Camonica.
Cogno mudou desde
quando fomos embora da cidade. Não cresceu muito por falta de espaço físico
mas, não obstante, o progresso e o bem-estar social por aqui são visíveis nas
casas e prédios reestruturados e em tantas construções pós-modernas. As
barraquinhas seguem cobrindo, em parte, as ruelas e os nomes dos bancos,
escritórios, lojas e escolas. Instituto Técnico Industrial Estatal “Vittorio
Olcese”, leio em uma placa e penso a quantos adolescentes agora podem estudar
robótica sem ter que ir a Bréscia ou Milão, tão longe de casa. Última estação:
Shopping La Presolana. Que novidade! Desço e entro para dar uma olhada de perto
neste cubo de vidro e cimento que ocupa o espaço onde existia antes uma fábrica
têxtil; infelizmente, a crise de cinquenta anos atrás não deu trégua e, após
várias querelas, a fábrica fechou para sempre suas portas, deixando muita gente
sem emprego e decepcionada, vista a história secular desta empresa. O shopping
é como todos os outros, a mesma adoração pelo desperdício e pelo consumismo:
luzes, vitrines e tantas lojas que vendem de tudo... mas não estou aqui hoje
para isto. Olho o relógio e me dou conta que está quase na hora do grande
evento na Praça do Município, talvez consigo encontrar algum amigo de infância.
Música! Meus ouvidos
me dizem que vem lá da Igreja de São Filipe Néri: é a fanfarra que arrasta uma
multidão de pessoas com as músicas típicas da nossa região; junto-me a esta
procissão profana e, sem me dar conta, chegamos em Piamborno.
A Praça do Município
está lotada. Muitos, atraídos pela multidão, vão se aproximando para saber o
que está acontecendo. Em uma varanda, reconheço as câmeras de uma famosa
emissora de televisão, a feira agora é importante, muito mais que naqueles
tempos; o excelente trabalho dos voluntários encarregados de promover o turismo
local, da câmara municipal e a ajuda dos patrocinadores foram determinantes na
prosperidade do evento que agora é conhecido fora da região... Meu Deus!
Estamos entre os convidados, a caixa nos espera para ser aberta. Não estou
acreditando, o que parecia uma brincadeira ou uma coisa particular e íntima se
transformou em um reality show: pessoas que esperam as ex-crianças para ver ou
vender emoções... típica decadência moral ou o quê?
Decido ir mesmo
assim, estou aqui para isto e, francamente, esta viagem no tempo me fez
redescobrir sabores, cheiros e lugares muito importantes para mim, alguns
refletores não farão mal... as mãos, porém, continuam suando. O acesso ao palco
se dá por uma entrada lateral, passo o polegar no scanner e sou autorizado a
entrar: eu, como outros felizardos, tenho um lugar como protagonista; não
presto atenção aos que me cercam, apesar das caras me parecerem familiares.
Mas, por uma certa timidez ou porque o evento está para começar, acabamos por
ficar nos nossos lugares e olhar a praça.
Chegou o momento tão
esperado: um funcionário da Prefeitura desenterra uma caixa enferrujada pelo
tempo, um outro a abre e tira de dentro uma outra menor, parece até uma
matrioska. O recipiente é entregue a um senhor bastante idoso; rugas de
expressão sulcam seu rosto e somente os olhos revelam sua identidade... o
antigo prefeito de Piancogno! Aquele que se encarregou de enterrar “A Custódia
dos Pensamentos”, no limiar de seus cem anos, talvez estava mais emocionado que
nós, ex-crianças... viveu tanto para conseguir revê-la. Ah, talvez por isso o
motivo de tanto tumulto midiático.
Somos chamados um a
um, tantos faltam à chamada, talvez porque não conseguiram vir ou, então, não
se interessaram ou, infelizmente, não estão mais presentes; reconheço algumas
carinhas e compreendo como o tempo é implacável. Mas eis que chega minha vez… o
público aplaude e vou para frente, entre os refletores. Em seu rosto
transparece muitas vicissitudes e seu aperto de mão ainda é vigoroso: o ex
prefeito entrega em minhas mãos um envelope amarelado que exala um leve cheiro
de mofo e, atrás dele, meu nome com a letra da professora. Infelizmente ela não
está presente, recebi a notícia de sua “viagem” somente no ano passado. O que
tenho em mãos é uma lembrança dela e dá um aperto no coração.
Pelo regulamento,
cabe a nós escolher se abrir os envelopes publicamente ou em privado. Fico em
dúvida se abro o meu para satisfazer, em primeiro lugar, a minha curiosidade e
do público ou, quem sabe, entregá-lo à nova geração e a meu netinho; mas depois
meu olhar cruza o do ex prefeito... viveu tanto para chegar a este momento que
talvez lhe devo essa. Então, movido pelo impulso de tantas emoções, tomei a
decisão que vocês sabem e fui embora. Desta vez, porém, para sempre.
Até logo, Piancogno.
Juliana Renó Serpa de
Carvalho
5 comentários:
parabéns Juliana,eu sempre soube que vc iria brilhar.Abraços aos pais,meus amigos queridos pelo sucesso dos filhos maravilhosos.Saudades de vcs.Flora M. Gomes. hasta!!!
Parabéns, mesmo! Muito bom o texto.
Lembrei de quando eu gritava lá de baixo do seu edifício dos bancários em SP, para vc vir brincar na rua com a agente. Mas não, ficava trancada dentro do quarto estudando. Fez muito bem viu... rs Parabéns Ju!
Ju... Que orgulho...Parabens!!!!
Obrigada pelo carinho de voces. Fiquei muito feliz ao ler as homenagens e as lembranças dos tempos do Brasil.
Beijos com saudade
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