Naquele ano, o cafezal havia saído mais forte
da geada, e agora aparecia vestido de branco, inteiramente branco, branco,
branco, feito noiva.
Naquele ano, ela fez 80, e eu fui lá.
Festança. Tinha até uns trens diferentes que eu
nem imaginava. Na chegada, ela já estava de pileque; quando saí, todo mundo
estava. No meio de tudo, uma declaração solene: “Agora que alcancei a viuvez,
não caso nem morta! Só namoro. ”
80 anos!
Grande dama! Perder o presente era um pecado
mortal sem perdão. Divagando sobre o medo da passagem do tempo, saiu-se com
essa: – Não suporto essa bobagem de saudade do passado! Tenho saudade, sim. Mas
é do futuro.
E resumia:
– Da vida não se leva nada, meu filho!
Os primeiros trinta? É quando a gente nasce,
cresce e rala. Tudo é “Não”. Nem bem crescidinho, lá vem a escola cheia de
sarampo, piolho, caxumba, tarefa, prova.
Depois, faculdade, emprego, paixão,
acasalamento, casamento e procriação. (Não exatamente nesta mesma ordem.) Os
filhos chegam, e o que parecia fazer parte do passado, recomeça: choro,
mamadeira, cocô, dente, escola, cursinho, faculdade e, de novo, o primeiro
amor. Ah! Lá se vão os primeiros trinta!
Daí, você já tem diploma, carreira e família.
Agora só falta provar a que veio. Nada satisfaz! Que coisa! O diploma não é
nada sem aquela colocação, a carreira não é nada sem aquela casa, o carro não é
nada se não for daquele tipo. Saudades da escola!
Os cinquenta chegam, e o circo das ilusões
desmonta e despenca, monótono e cruel. Segurar o tempo! Mas como? Quanto?
Quanto mais se segura, mais depressa ele escorre. Quando os sessenta batem à
porta, a gente chega a pensar que o melhor já passou.
Mas ela concluía:
– É mentira! Uma baita mentira!
Que susto!
São os sessenta que desatam paixões,
desembaraçam ilusões, desentulham pesos, desbancam todas as seguranças que
sustentam o efêmero, dão consistência à existência. Sustança, entende, meu
filho? Daí pra frente, nenhuma bobagem, nada pra depois.
Quem ganhou, ganhou. Quem perdeu, perdeu. As
lágrimas lavam a alma. O riso alimenta o corpo. O amor pinta paredes. Alguma
desilusão? Ervas amargas consertam o estômago. É nesse terreno que brota a
esperança. Essa porteira só abre, nunca fecha. Quando ninguém espera nada, por
não esperar, nada perde. Depois dos sessenta, a gente pode até dar “bom dia” a
cavalo. Ninguém vai notar. Nos tornamos o que somos: livres.
– E tudo passa tão rápido, meu filho! Tão
rápido! Água escorrendo pelos dedos.
Na vida, como no cinema, a luz sempre acende no
fim. Deve ser bom sair da sala querendo assistir o mesmo filme.
Foi uma conversa da tarde, numa varanda, com
bolo, queijo e café.
Depois ela morreu. Acendeu a luz do fim do
filme. Saiu da sala. Havia vivido seus três trintas. As últimas palavras foram:
Quero ver Deus. Tsss! Deus é que era doido pra ver … ela!
E o cafezal estava florido.
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