Aos 15 anos,
o idealismo desfraldava bandeiras. E tanto buzinamos no ouvido do reitor que
ele nos deixou “dar catecismo” aos domingos de manhã, no Aterrado. Daí, a manhã
virou tarde, o domingo emendou no sábado, e logo a gente estava metido nas reais
necessidades do povo. A gente não ia lá só pra “dar catecismo”: isso havia
virado o pretexto ou o corolário. Num instante, conhecíamos as crianças, as
famílias, as lideranças. Começamos a visitar as casas e as cabeças, o
suficiente para que seus habitantes, das casas e das cabeças, descobrissem o
poder de reivindicar melhorias e não precisassem mais serem transportados, todo
ano, para escolas públicas, quando a água subia.
Em 1978, com
20 anos, em Taubaté, fui designado para o Alto de São Pedro, anexo ao “Lixão”,
onde era depositado todo o lixo da cidade. Eu visitava semanalmente uma senhora
idosa que não saía mais de casa e morava no meio daquilo, mas tão literalmente,
que a janela do barraco dela não se abria mais: a sujeira acumulada não
permitia. Conscientização + atuação + ousadia de mudar, mudou o povo e o povo
mudou o lugar.
Era uma
época de mudanças. O ainda vivo Vaticano II, a ainda viva Teologia da
Libertação, a atuação da Igreja, a renovação do pensamento, o esgotamento do
regime militar, os novos tempos – ah! – tudo levava a crer que era possível
crer, tudo levava a esperar que houvesse esperança. A gente sonhava! Era bom
sonhar.
Aí vieram o
José, o Fernando, o outro Fernando, o Luiz … E isso que está aí. O Sílvio, a
Xuxa, o Fantástico, o Gugu e o Faustão, entre outros, foram encarregados de
anestesiar o espanto. Cadê o ideal, aonde foi parar o sonho?
Saudades do
pensamento!
Como disse
Sônia, a impressão que se tem, hoje, é que o alimento não passa mais pelo
sistema digestório, não para no estômago nem transita pelo intestino. Não há
retenção de nutrientes. Num organismo social doente como o nosso, o alimento
passa da Boca ao Reto: diretamente do estado de alimento ao estado de algo que
a honra de escrever aqui não me permite nomear. Estamos doentes, debilitados e
envergonhados.
Saudades do
Aterrado!
Tenho 57
anos. Isso não é nem muito nem pouco. Mas o suficiente para me sentir
desconfortável por ter acreditado e, hoje, apenas fazer parte. Para confiar na
geração nova, que nunca soube o que fosse uma enchente do Aterrado ou o medo de
um caminhão do exército, mas que pinta a cara, ainda, se for preciso, até sem
saber direito por quê. Para permanecer num país em que ficou bom ter sobrenome
esquisito e obter cidadania estrangeira. Será que já não somos estrangeiros,
aqui? Quando o sonho que mantém a realidade se desconstitui a cada novo dia, a
aurora, coitada, também tem vergonha de nascer: pra ela também ficou difícil
seguir adiante.
Época de
mudança? Não. Mudança de época.
Tanto que a
gente ficou livre para ir embora, livre para ficar, para se meter, para se
mentir ou simplesmente só olhar. Mas, vamos lá: não se permita nem ser
arrastado nem ser anestesiado. Questione. Não da poltrona, do lado de fora.
Será bom sair do ar condicionado, conhecer o que anda por aí. Quem sabe a gente
não descubra um veio de esperança! Se ela é a última que morre, ficar perto
dela parece ser um bom lugar.
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