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2 de julho de 2015

A ÚLTIMA QUE MORRE - Renato Lobo

 Em 1973, aos 15 anos, entrei num seminário fora da cidade, e entre ele e a cidade havia um bairro chamado Aterrado. E era isso mesmo: um aterrado. E todo final de ano ele virava alagado. Lembro até de atravessar de barco para chegar do outro lado.

Aos 15 anos, o idealismo desfraldava bandeiras. E tanto buzinamos no ouvido do reitor que ele nos deixou “dar catecismo” aos domingos de manhã, no Aterrado. Daí, a manhã virou tarde, o domingo emendou no sábado, e logo a gente estava metido nas reais necessidades do povo. A gente não ia lá só pra “dar catecismo”: isso havia virado o pretexto ou o corolário. Num instante, conhecíamos as crianças, as famílias, as lideranças. Começamos a visitar as casas e as cabeças, o suficiente para que seus habitantes, das casas e das cabeças, descobrissem o poder de reivindicar melhorias e não precisassem mais serem transportados, todo ano, para escolas públicas, quando a água subia.

Em 1978, com 20 anos, em Taubaté, fui designado para o Alto de São Pedro, anexo ao “Lixão”, onde era depositado todo o lixo da cidade. Eu visitava semanalmente uma senhora idosa que não saía mais de casa e morava no meio daquilo, mas tão literalmente, que a janela do barraco dela não se abria mais: a sujeira acumulada não permitia. Conscientização + atuação + ousadia de mudar, mudou o povo e o povo mudou o lugar.

Era uma época de mudanças. O ainda vivo Vaticano II, a ainda viva Teologia da Libertação, a atuação da Igreja, a renovação do pensamento, o esgotamento do regime militar, os novos tempos – ah! – tudo levava a crer que era possível crer, tudo levava a esperar que houvesse esperança. A gente sonhava! Era bom sonhar.

Aí vieram o José, o Fernando, o outro Fernando, o Luiz … E isso que está aí. O Sílvio, a Xuxa, o Fantástico, o Gugu e o Faustão, entre outros, foram encarregados de anestesiar o espanto. Cadê o ideal, aonde foi parar o sonho?

Saudades do pensamento!

Como disse Sônia, a impressão que se tem, hoje, é que o alimento não passa mais pelo sistema digestório, não para no estômago nem transita pelo intestino. Não há retenção de nutrientes. Num organismo social doente como o nosso, o alimento passa da Boca ao Reto: diretamente do estado de alimento ao estado de algo que a honra de escrever aqui não me permite nomear. Estamos doentes, debilitados e envergonhados.

Saudades do Aterrado!

Tenho 57 anos. Isso não é nem muito nem pouco. Mas o suficiente para me sentir desconfortável por ter acreditado e, hoje, apenas fazer parte. Para confiar na geração nova, que nunca soube o que fosse uma enchente do Aterrado ou o medo de um caminhão do exército, mas que pinta a cara, ainda, se for preciso, até sem saber direito por quê. Para permanecer num país em que ficou bom ter sobrenome esquisito e obter cidadania estrangeira. Será que já não somos estrangeiros, aqui? Quando o sonho que mantém a realidade se desconstitui a cada novo dia, a aurora, coitada, também tem vergonha de nascer: pra ela também ficou difícil seguir adiante.

Época de mudança? Não. Mudança de época.

Tanto que a gente ficou livre para ir embora, livre para ficar, para se meter, para se mentir ou simplesmente só olhar. Mas, vamos lá: não se permita nem ser arrastado nem ser anestesiado. Questione. Não da poltrona, do lado de fora. Será bom sair do ar condicionado, conhecer o que anda por aí. Quem sabe a gente não descubra um veio de esperança! Se ela é a última que morre, ficar perto dela parece ser um bom lugar.

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