“O deus do oráculo de Delfos
nada esconde, nada revela, só significa.”
Heráclito de Abdera
Nenhum outro século foi mais curto do que esse que passou. Alguns historiadores afirmam que o século XX começou na Primeira Grande Guerra, em 1914, e terminou na queda do muro de Berlim, em 1989. Feitas as contas, o século XX durou apenas 75 anos e o século XXI começou 11 anos antes: no dia em que o muro caiu (Eric Hobsbawm).
E começou o novo milênio, estranho, complicado. Muita coisa mudou. Mudou, por exemplo, a noção de tempo. O tempo foi comprimido, uma vez que foi relacionado à tendência de super-acumular bens e acelerar o consumo. Quem vive agora, viu em poucas décadas o tempo se encurtar e se estreitar; e viu tudo isso acontecer de um modo muito rápido, efêmero e sem nenhuma transcendência que explicasse o fenômeno.
O tempo é outro. Se demorar pra decidir, você “dança”. Um segundo pode ser decisivo na vantagem. E os espermatozóides, de alguma forma, já sabiam disso.
É curioso ver como o tempo era medido ou percebido antes. Até o século XIX, as mudanças aconteciam por séculos: havia o século XVIII, depois o século XIX... A partir do século XX, as mudanças passaram a acontecer por décadas: vieram os anos vinte, os anos trinta... Lá pelo meio da década de 80, as mudanças foram percebidas por anos: 1986 foi diferente de 1985, 1997 de 1996, e por aí afora. O século XXI, quando começou, já parecia velho. Tudo muito rápido, volátil, descartável, efêmero, cruel.
É intrigante essa questão do tempo. Numa metrópole, como São Paulo, o tempo se divide em dia e noite. Não existem horas. É de dia e, de repente, já é de noite, sem que se perceba a mudança. Em São José dos Campos, cidade menor, ainda existe manhã, tarde e noite. Na minha cidade, do tamanho de um ovo de codorna, existe duas da tarde, duas e quinze, duas e meia, duas e quarenta e cinco... A cada tantos minutos, o relógio da igreja anuncia, sem pressa, o momento do dia. E você sabe o momento que está vivendo, porque, naquele lugar, as horas têm cores, o tempo e os relógios não têm pressa, o ar tem aroma, e fica a bondosa impressão de que a vida é longa e você vive mais. Ao contrário, onde tudo é muito rápido, a sensação de ter a vida escorrendo pelo vão dos dedos é deveras cruel.
O tempo se encurtou. As distâncias não existem mais. É uma ciranda, só que nada infantil.
Nessa ciranda da concentração financeira, descentralizou-se a produção e os tempos foram reduzidos: o giro nos setores de produção ocasionou a intensificação dos processos de trabalho e a conseqüente aceleração da qualificação e desqualificação da mão-de-obra, necessária ao atendimento das novas necessidades. É assim, ó: hoje, você serve, ta. Amanhã, ficou obsoleto. Daí vieram cursos, workshops, congressos, especializações, mestrados, doutorados, pós-doutorados, pós-pós-doutorados. Cada vez mais de cada vez menos. O sistema gratifica, sim, mas exige e devora. O grande Outro é voraz.
Aceleração na produção acarreta aceleração do consumo, troca de bens, circulação de mercadorias, on line e real time. Se não for assim, não acontece, você ficou defasado, e bye-bye! Não é possível que essa aceleração não influencie, determinantemente, a maneira de ser, pensar e agir do homem contemporâneo.
A primeira conseqüência dessa mudança foi acentuar o caráter volátil e efêmero daquilo que se chama “produto”: as modas, as técnicas de produção, os processos de trabalho, as idéias, ideais e ideologias, os valores e práticas estabelecidos, o chocolate instantâneo, o macarrão pré-cozido, o talher, o copo e o prato. Tudo é descartável. (Se duvidar, até você.) Tudo muda muito, e muito rápido. O homem pós-moderno não acompanha mais as mudanças que ele mesmo criou e incentivou. Seria a história do médico e o monstro? Se for, quem é o médico e quem é o monstro? E a quem essas mudanças interessam?
O mercado financeiro existe a partir de capitais fictícios, voláteis, uma ciranda que resiste ao discurso onipotente dos economistas, e traz cada vez mais à tona uma sensação de embaraçosa e profunda alienação e aleatoriedade. E é sobre esse balão inflado que repousa, não a economia mundial, mas – o que realmente interessa – a vida das pessoas: a sua vida, a minha.
Quem diria que Platão seria tão atual!
Como que saídos da nossa própria caverna vivemos, no dia-a-dia, a ilusão da “Matrix”. Quem sabe, não sejamos mesmo um código num computador? Ou um vírus num organismo maior?
É esse fenômeno que rege a manipulação do gosto, da opinião e do desejo. Quem garante que você realmente gosta de usar a marca que usa? Se você afirmar que foi você mesmo, vou ter de pedir licença para desiludi-lo. Caso você insista em afirmar que todos seus gostos, opiniões e desejos partem (só) de sua autonomia, terei de avisá-lo que isso é uma deliciosa ilusão, mas só uma ilusão. Não é possível, nunca foi possível nem será, em época alguma, sair de debaixo da influência externa. Quem vende mídia, e até quem vende pipoca, sabe disso. E sabe mais: sabe que o que todos querem é preencher uma lacuna interna, o fosso de cada um. “Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode completar, nós nos garantimos de poder continuar a desconhecer precisamente aquilo que nos falta” (Lacan).
A mídia produz um cortejo de signos a fim de alimentar a insaciável indústria do comércio cultural. Ou da cultura comercial. O resultado dessa inflação dos signos é o esvaziamento dos significados. É nisso que eu queria chegar. Não temos mais símbolos, temos signos. Signos, com cada vez maior pretensão a símbolos, e totalmente vazios de significado. Esses signos, ao invés de remeter-se a um significado maior, atraem o foco para si mesmo. O que sobra é uma sensação de desnorteante e mareado vazio.
Quer um exemplo? Olhe as letras de música do nível mais popular. O que você canta numa frase não faz o menor sentido em relação à outra. Aliás, nem é pra fazer mesmo. É só pra produzir ruído. Está mais para uma forma de esquizofrenia musical, um agregado de significantes indistintos, sem nenhuma relação entre si. E isso produz a alienação total de grupo. É a loucura das grandes massas que cantam juntas, berram juntas, se espremem nos estádios para louvar juntas. Mas com um saldo: ninguém conhece ninguém e nem julga necessário conhecer. O sujeito nem bem saído dali, pode roubar, matar e violentar quem esteve do seu lado, sem que isso represente nada para ele.
Esse é o saldo do anonimato.
Na minha cidade – lembre-se do ovo de codorna – existia o “Manoel da Laura”, que quando a Laura morreu, casou-se com a Maria, mas continuou sendo o “Manoel da Laura”. Porque essa era a sua história e todo mundo sabia e contava e história a gente não muda.
Nas grandes cidades, cada vez mais, ninguém é de ninguém porque ninguém é ninguém. A alienação é o carro-chefe. Os efeitos psíquicos dessa desagregação são desastrosos. A identidade pessoal supõe uma unificação temporal do passado e do futuro, com o presente que tenho diante de mim. O esvaziamento do discurso e da palavra remete à incapacidade de unificar na vida psíquica o passado e o futuro, no presente. Não há mais história pessoal. Não existe mais um sujeito com nome e história, como o “Manoel da Laura”. As pessoas não se olham mais umas às outras. Olham através das outras. E não falam mais nada. Não têm o que dizer. Esperam que se lhes fale, ou que se repita o que elas já sabem ou já ouviram. Mas, se as palavras não operam o sentido e os significantes não montam mais significados, quem poderá compor sua própria biografia? Cadê o “Manoel da Laura”, que já no nome contava a história? E onde ninguém é ninguém, qualquer um estará autorizado a matar por um tênis?
Biografia! Biografia é a salvação. Há pessoas para quem a vida acontece do lado de fora, como se não fosse nem delas nem a delas, como se tivessem perdido a senha de acesso a si mesmo, trancadas do lado de fora, e já não fossem protagonistas de qualquer história, nem da própria. Vazias e áridas, essas pessoas se assemelham a bonecos de corda. Só enquanto dura a corda o movimento continua. Não há vida interior que as anime.
Então, será a solidão o preço da modernidade? Terá a modernidade algum significado? Terá o significado entrado em colapso na modernidade?
O que entrou em colapso foi a cadeia significativa. O significado das coisas, que ontem parecia tão simples, tem falência decretada. Essa situação faz aumentar – mais do que se esperava e devia – os grupos de ajuda gratuita: religiosos, esotéricos, de auto-ajuda, comunidades fechadas, terapêuticas, on line, por e-mail, por telefone, enfim, o vale-tudo. Muito eficientes na intenção. Nem sempre eficazes na execução. Se tudo na vida tem preço, o preço desses grupos parece ser a alienação.
Até que se prove o contrário, quero crer que esses grupos sejam sérios, honestos, e que carregam um caminhão de boa-vontade. Contudo, não espere muito que eles modifiquem a sua orientação básica de funcionamento: alienar para “desalienar”? Ou como já ouvi, prender para libertar? É libertar? Não vem ao caso discutir se essa conduta produz algum resultado e até onde. Na questão em pauta, o que ela não produz é o antídoto para o próprio veneno. Produz cogumelo. E cogumelo só nasce em madeira podre, nunca em madeira de lei.
O que falta é sentido na cadeia significante. O que se vê por aí são grupos gerando uma cadeia significante própria, cujo significado provém deles mesmos, e só faz sentido para eles mesmos e para quem se colocar debaixo deles. Não é raro que se ofereça à venda o que não se pode entregar. Há gurus da produtividade, rentabilidade, afetividade, aproveitamento do tempo e das oportunidades. Há gurus para todo bolso, para todo gosto e todo mau gosto.
Também, não raro que se presencie tamanha movimentação religiosa girando em torno de lideranças personalistas, slogans motivacionais, experiências sensoriais, linguagens corporais e sensações alienantes. Contudo, também é raro encontrar alguma palavra plena que faça e extraia significado da cadeia que ela própria gerou. O orador, pregador ou líder tem sempre de estar fazendo rir ou chorar, sempre provocando alguma sensação, qualquer sensação, qualquer uma, nem que seja uma piada de mau gosto. Da palavra, por si só, não brota mais nada. A palavra virou fruto seco, marcado pela aspermia.
À ética de resultados vinculou-se a ética do mercado. Daí a movimentação, como nunca se viu na história, em todos os campos da atividade humana. Do futebol à arte, da medicina à religião, tudo obedece a projetos de resultado, a leis de mercado e marketing pessoal. Há muito tempo, não se via tanta estratégia maniqueísta, maquiavélica e sensacionalista, promovendo ideais pessoais e particulares, girando estrategicamente em torno daquilo que se costumou chamar de revitalização, em seus múltiplos nomes.
No centro de tudo, a rainha sensação. Se for só a sensação o alvo da busca, que não se queixe quando ela tomar conta da casa e fragmentar o indivíduo. Se só o que conta for a sensação, o signo sem sentido, o símbolo com valor de simulacro, por que as relações têm de valer alguma coisa, além da intensidade do momento? Se o corpo só vale por aquilo que experimenta no momento, e se o momento só tem valor se o corpo chegar ao limite do gozo, e sem fim, por que levar em conta o significado que o transcende? Aliás, às favas com qualquer transcendência! Se, no final, o significante, aleatório e alienante, não produzir nenhum significado, quem se importa? Quem liga pra isso? The show must go on! O Gugu e o Faustão precisam continuar. As pessoas continuarão vazias. Um dia, irão cobrar! Mas, por enquanto, os estádios estão lotados e os palhaços assumem a cena.
Salve-se quem puder!
Freud nos deixou um software esplêndido para entender a alma humana e a vida, enfim. No fascinante universo do pensamento psicanalítico, o primeiro passo é levar a sério o inconsciente. Essa é a porta de entrada de uma construção que já fez 100 anos, enfrentou desafios e nunca buscou resultados imediatos. Porque sabe que o seu trabalho é longo. Tem certeza do que faz. E quem tem certeza, não precisa ter pressa.
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