A Brazópolis, como canção de amor de um filho e neto adotivo em seu nome e no de quem, não tendo sabido e já não podendo embora cantar, seguramente assinaria embaixo destas linhas.
Um único trem passava, indo ou voltando, pela estação de um único agente e um único guarda-chaves e trilhos de um único e desnecessário desvio. De manhã, vindo de Paraisópolis, já gemia uma imperceptível saudade futura e levava passageiros e carga pouca para Itajubá; à tarde fazia o percurso inverso da mesma impressentida saudade e do ramal fadado a desaparecer. Deficitário, dizia o Governo, como se deficitária não fosse a própria e inteira estrada de ferro, igualmente fadada a desaparecer, como se provou anos após. Ou como se deficitário não fosse desde sempre e para sempre o próprio Governo, a nunca desaparecer, não obstante. O que se encobria talvez era o propósito inconfessado de eliminar desde logo a concorrência a produtos da nascente indústria automobilística (Fuscas e Dauphines já povoavam timidamente as ladeiras da cidade), tanto que tinha até data certa a extinção do ramal, a coincidir com a da inauguração da rodovia pavimentada. Era, pressentido, o eterno ciclo da vida: morte de uns, nascimento de outros, vida a seguir. Fosse como fosse, a verdade é que a cidade estava habituada ao apito matutino, com direito a bis pela tardinha. Fazia parte da sinfonia do lugar, enriquecida ainda pelo marulhar das águas do Vargem Grande, por sobre cuja ponte atravessava o trem enviando espirais de fumaça para o céu; e pelo canto de centenas de canarinhos-da-terra, a catarem migalhas da máquina de benefíciamento de arroz e a amarelarem e afoguearem a ladeira da estação até às casas do Zequinha Gomes e do Edson Guimarães, udenistas de quatro costados.
A cidade toda já se habituara também à figura mansa, vinda de longe e chegada no mesmo trem, do pequeno homem bom que chefiava a sua estação, alçado quase à posição de autoridade local, tamanha era a consideração em que o tinha, de um lado, e a importância que lhe atribuía à função, de outro. Sua calva lustrosa era objeto de chistes, sempre retribuídos com iguais, espirituosos e bem- humorados motejos. Seu Antônio e a cidade toda eram um caso de amor.
- Bendita a hora em que eu vim pra Brazópolis! - fazia ele questão de proclamar, e esta era sua declaração de amor preferida. - Que gente boa, que companheirada! - continuava, enchendo a boca e o coração. Era, além de tudo e sobretudo, sua maneira de mostrar que este, seu coração, não partilhava do desígnio do destino, a fazê-lo nascer longe dali; mas era seu cúmplice (do destino) no que dizia respeito à escolha do lugar como morada e verdadeira terra.
Viera atrás de ginásio para os filhos menores, que queria estudados e doutores. E desde logo o dinheiro pouco para pagamento das mensalidades foi remediado pela santa figura de Antônio Noronha, o diretor, a conseguir-lhe uma bolsa para a menina. A vida inteira se lhe ajeitou no lugar, onde o segundo filho (o primeiro já fora para São Paulo arrumar emprego) era alfaiate e ajudava o Cid; a filha mais velha igualmente costurava e defendia os seus trocados; e os filhos menores, um menino e outra menina, estudavam e
arrematavam (chuleavam, embainhavam, caseavam) as calças confeccionadas pelo irmão e com isso faziam ao menos para o cinema. Corria serena e simples a vida, como o trem naqueles trilhos.
Os vizinhos, como eram bons! Dona Adolfina e Seu Pedrinho; Dona Cotinha e Leonídia (as donas da casa cujo aluguel era pago pela Rede Mineira de Viação); Dona Miquelina, a italiana professora de Francês, e sua irmã velhinha Minga, a chorar de eterna e inapagável saudade de Francisco Alves; e a suspirar, por isso, diante do rádio, todo santo domingo, ao meio-dia; Dona Carlotinha e seus impecáveis crochês; Expedito, o açougueiro que veio a ser compadre; Demitri e Regina Brito; mais para o alto da rua, o prefeito Vergueirinho; e um pouco mais acima, o Otacílio farmacêutico. E para que não se condene o herói de parcial, por menção excessiva de sua história a udenistas, é bom que se diga que também eram seus amigos o Antônio Gomes e o Noé Serpa, pessedistas de iguais costados. Ou seriam petebistas? Seu Antônio não sabia, como igualmente não sabia que os outros eram udenistas. Sabia apenas que eram todos seus amigos, como seu amigo podia vir a ser todo e qualquer brazopolense, e apenas por ser brazopolense, quando por mais não fosse.
Corria serena a vida. Do fundo da casa, porém, do alto da escada, já se viam, para além do Bosteiro (era este o nome do córrego, que fazer?) e abaixo da mata, já se viam homens trabalhando num movimento de terras e de máquinas: a rodovia se construía. Mas quem ligava para isso? Era o progresso, diziam.
A vida corria tão serena, a vinda para Brazópolis fora tão boa para Seu Antônio que ele conseguiu até pagar o que lhe parecia sem fim, crescente e impagável, ou seja, suas contas na farmácia, na venda, na padaria, no açougue da cidade de onde viera. Pagara até o empréstimo que lhe fizera o cunhado. E conseguira, enfim, o que tanto lhe pedia o menino, o qual, por sua vez, já achava ser aquele um sonho impossível, ou seja, comprara um rádio. Um rádio Semp para ser pago a prestações na Assumitel Loja, do Pedro Gomes. Pois, duvide quem quiser duvidar, Seu Antônio, antes, não tinha sequer um rádio. Ora, como agora a vida corria serena, o menino e sua mãe cantavam junto com o rádio, enquanto se pregava botão. Depois, o menino ia
entregar a calça arrematada ao irmão, de quem às vezes conseguia que lhe pagasse um sorvete.
Era tanta a felicidade daquela casa que um dia a mãe do menino cantou com ele numa festa, acompanhada pelo piano de Marialba e pelo violino de Waldemar Mendonça. E pelo cavaquinho de Onofre da Candinha, Jaú (em outras horas vagas juiz de futebol) à bateria, Chico Rato no pandeiro. E sob os aplausos entusiasmados de Seu Antônio, sócio, sim senhor, do Clube Wenceslau Braz, onde a festa se realizou. Nem o tempo logrou amarelecer esta lembrança, eternizada em retrato em preto-e-branco batido pelo Deoclécio. Nele aparecem, em plena emissão de um agudo, à frente de um microfone antigo como estas lembranças, uma mulher de cara redonda e feliz e um menino pequeno e muito branco de cabelo curtinho, recém-crescido depois de raspado, de paletó preto, em cuja lapela se distinguem, douradas e brilhosas, uma vassoura e uma espada, lembranças de uma certa campanha presidencial, símbolos contrastantes e adversos a demonstrarem, juntos, que à felicidade e à harmonia tanto se lhe davam pessedismo ou udenismo ou petebismo, meras siglas acrescidas de um ismo que provavelmente nem mereceriam. O que importava era o rádio a ensinar cantigas.
Uma cantiga era a vida. A Rádio Difusora Brazópolis, sob a direção de João Mário e Fábio, difundia canções pela cidade, por Bom Sucesso, por Luminosa, por Cruz Vera, outro tanto fazendo o serviço de alto-falante do Zé do Tronco, com Samuel Miranda na locução, fazendo rolar em ondas a voz de Nelson Gonçalves até a Estação e o Vargem Grande e modular pela Avenida acima e alcançar o Morro do Cancan, passando pelo Querosene. Que era o Querosene? Fique quieto, Querosene era a zona.
Seu Antônio feliz como um menino: seu sonho pequeno não precisava ir além daquelas colinas, pois que nem o céu, a seu juízo, se situaria acima delas. O céu era ali, onde se encontravam anjos como seus amigos Chico Resende, Cláudio, Lázaro Serpa, Geraldo do Bar, Dedé Cavichi, entre outros ou entre todos.
Entretanto, abaixo da mata progredia o movimento de homens, máquinas e terra.
Deixasse estar, que o trem ainda apitava bonito por sobre a ponte do Vargem Grande. Ninguém fazia caso da saudade que gemia, até porque saudade futura só mesmo se fosse em sonho.
E sonho por sonho, ficava Seu Antônio com o presente e mais bonito. Aos domingos, depois da missa celebrada pelo Padre Quinzinho e do infalível passeio na Praça, em indefinidas voltas em tomo da igreja. Dona Nica sempre urdia uma comidinha diferente: ora um arroz de Braga, ora uma macarronada acompanhada de um tutu de feijão; ora um pastel, de forno ou frito, ora uma pizza, iguaria nova ensinada por Dona Miquelina. Expedito estava sempre pronto a fornecer um lombo de porco caprichado e anotado na caderneta para ser pago no fim do mês. Às vezes se revezavam as casas, os fogões e as mesas de Seu Antônio e de Dona Adolfina para o almoço domingueiro servido a ambas as famílias, reunidas em amiga
comunhão.
E a vida corria feliz. Apenas um porém, pequeno porém, apareceu, um dia: Seu Antônio atentou à figura e às queixas do menino, que se mostrava pálido e pequenino para a idade. Resolveu levá-lo ao médico em Itajubá, médico da Rede e do IAPFESP, apenas por isso procurado na cidade vizinha, já que Brazópolis tinha, como não?, os seus doutores. Foi então que o menino desenvolveu uma paixão antiga, já de há muito aninhada no coração: o amor pelo resfolegar e pelo apito do trem, pela fumaça do trem; pela visão da locomotiva lá adiante, divisada da janela do vagão quando começava a fazer a curva; pelo par de trilhos, lustrados pelas rodas do trem, a ficar infinitamente paralelo para trás e atrás do último vagão sobre as pedras e dormentes; pelas moitas de erva-cidreira ladeando os trilhos; pela sucessão de postes do fio do telégrafo, povoado de tantas andorinhas; pelas cercas de arame farpado, pelos pastos, pelas árvores, pelos mourões, porteiras e currais, pelo gado pastando em paz; e sobretudo por uma certa cascata, a rolar abaixo de um barranco por onde passava o trem. De manhãzinha, as gotículas se levantavam ao cair da água sobre a água. E já os olhos do menino se enchiam d'água, de pura e incontida emoção diante da obra de arte de quem inventara aquelas cercanias de cidade que se chamou presépio. A cascata, ah, a cascata!... Vista do trem era muito mais bonita, ora se era! Ainda mais com aquela moldura de capim e folhas rorejando orvalho colorido pelo sol tímido da manhã...
Depois, a caixa d'água em frente à fazenda do Chiquito Mendonça, onde o trem parava para "beber". Mais adiante, a beleza bucólica de Estação Dias, onde Seu Antônio sempre descia à plataforma para tirar dois dedos de prosa com o amigo Antônio Gomes. A máquina de beneficiar café de Antônio Gomes. Ao lado, um prédio com a inscrição "Leon Israel Agrícola e Exportadora".
O melhor, porém, ainda estava por vir ou por chegar: Piranguinho, onde um pretinho adentrava os vagões com um balaio cheio daqueles cheirosos e bonitos pés-de- moleque, quadradões deste tamanho, juro, tão grandes que só se acabava de comê-los quando o trem atravessava a Boa Vista, já em Itajubá. O menino lambia os beiços e os dedos, antes de absorver-lhes o melado restante com o papel pardo de embrulho com que era servido o doce.
- Nada de mais, não — dizia o doutor dá este fortificante pro menino.
O menino voltava, e ao chegar, de tardezinha, ainda admirava o movimento na plataforma da estação: quanta gente para admirar o trem e ver os passageiros! Rapazes olhando as moças, moças olhando os rapazes nas janelas... O carteiro Pedro apanhando as cartas e encomendas para o Correio... Depois, ainda havia tempo de ver, no treino do Vasco (como não admirá-lo, apesar de o menino ser Flamengo?), Japão, Tó e Pio engraxando a bola no gramado todavia careca do Estádio Ataliba de Morais. E Marcos Manfredini, debaixo da baliza, a voar, qual Constellation local, e conferir todas.
Seu Antônio aviava a receita do médico no Otacílio. Nada, porém, de voltar o rubor à face do menino, que continuava pequeno. Problema de pouca monta, insuficiente para toldar a felicidade de morar em Brazópolis, onde a vida continuava a fluir serena como as águas do Vargem Grande. Apenas, mais idas a Itajubá eram necessárias. E renovava-se a poesia do caminho de ferro, dormentes e paisagens: o menino cada vez mais apaixonado. A figura protetora do pai a conversar no trajeto com o chefe de trem e o guarda-freios... O menino na janela, lasquinhas de amendoim do pé-de-moleque no vão dos dentes, no prolongamento do prazer maior da viagem...
Os médicos, receitas e fortificantes, entretanto, se sucediam, e nada de crescer o menino, ainda muito pálido. Foi então que Seu Antônio mandou às favas os médicos e receitas e fortificantes de Itajubá: "Ora", pensou, "aqui também tem médico, pago uma consulta e pronto, não vai me deixar mais pobre". E pagou. O menino, já então um rapazinho, foi ao Dr. Fernando, de cara comprida e muito magra, careca como o pai. Foi ele que decidiu, examinando:
- Isso só pode ser verme, Seu Antônio. Faz um exame de fezes do menino e me traz aqui o resultado.
O menino, que nunca tinha feito isso, instruído, mas não suficientemente, como se verá, a respeito do que fazer, tratou de arrumar um recipiente. E o que lhe pareceu apropriado foi um tubo cilíndrico de alguma pastilha, algo semelhante à embalagem que hoje se conhece de Cebion ou Redoxon: pois tinha pelo menos a forma do conteúdo que se lhe destinava. Encheu-o. E, acompanhado de Raimundo do Cinema, seu amigo, que, trabalhando à noite, tinha a tarde inteira para folgar, levou continente e conteúdo, ainda quente, ao Posto de Saúde. Zé Victor, todo sorridente, foi logo abrindo. Ora, o conteúdo era tanto que sobrava pela tampa e pelas bordas do continente, emporcalhando-lhe a mão. Ante a instantânea e ruidosa gargalhada
do menino e de Raimundo, Zé Victor, fingindo zanga, mas não podendo, na verdade, conter o próprio riso, observou:
- Que é isso, rapaz? Não precisava disso tudo, não, é só um tantinho, o bastante pra esparramar na lâmina, olha só.
E esparramou, depois de lavar a mão muito bem lavada com sabão e jogar a sobra (veja só!) com continente e tudo pela janela rumo a um mato que vicejava nos fundos do Posto. E chamou o menino para ver no microscópio o resultado:
- O Dr. Fernando acertou na mosca, olha só.
O Dr. Fernando era realmente bom. Tanto tempo atrás de médico de Itajubá, e o santo da terra é que fazia o milagre. Sarou o menino, alguns exames depois (com latinha e quantidade apropriadas, segundo prudente e eficiente ensinamento de Zé Victor, de mão limpa, doravante) e depois de outros dois achados nas lentes do microscópio, outra vez devidamente expurgados pela competência do Dr. Fernando.
Sarou o menino, que adquiriu rubor nas faces e começou a crescer, finalmente. Mas nem por isso deixou de viajar com o pai, a levá-lo sempre consigo nas viagens que fazia a Itajubá, nas folgas semanais. E o amor pelo trem e pela paisagem enraizou-se de vez.
(Continua...)
Escrito no Rio de Janeiro em 2003
5 comentários:
Que lembranças lindas de minha infância,ler este artigo foi como reviver o passado. Bendita memória. Parabéns!!
Publica logo o restante. Lindo. Saudades, lembranças...
É MESMO , E A CAIXA D' ÁGUA , ATÉ POUCO TEMPO ELA ESTAVA ALI , CADÊ ?
Sr Jose Joao, ate pouco tempo essa caixa d'agua estava jogada em um trevo na cidade de Pouso Alegre.
A MANDO DE QUEM ELA FOI PARAR LÁ? NÃO É PATRIMÔNIO DA CIDADE?
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