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13 de julho de 2011

O ÚLTIMO TREM - José Eustáquio Cardoso - Parte II

(...Continuação da Parte I)
Continuava o trem a escorrer sereno pelos trilhos, com direito a parada para beber água no Chiquito Mendonça e para apanhar passageiros em Estação Dias e Piranguinho. O apito soava tristonho como saudade que se avizinhava, no entanto, e subia pelas colinas do caminho e alcançava, com a fumaça, destino diverso: o céu, com direito a paradas no coração do menino.
E de quem mais? De quem, como ele, se emocionava com beleza e com saudade.
Seu Antônio feliz com o menino, sem embargo já de outra saudade que, presente, lhe veio habitar o coração: Dona Adolfina e Seu Pedrinho um dia se foram para São Paulo. E de outra, muito mais pungente porque irremediável: Antônio Noronha, o diretor do Ginásio, outro dia se foi para muito mais longe, tão longe que Dr. Crispim, o Promotor de Justiça, disse comovido, enquanto se cobria de terra o professor poeta:
- Mais quisera falar, mas a emoção me embarga. Adeus, caro amigo. Adeus.
O menino chorou pela primeira vez na vida, depois de feito homenzinho. E homem não chorava, dizia-se. Seu Antônio também, agradecido pela bolsa de estudo dada à filha e pela amizade dada a ele. Até o Vargem Grande, parecendo ter dado pela ausência de um pescador em seus barrancos, ensaiou de minguar as suas águas, mas a Natureza, sempre pródiga em providências, fez verter do céu, no fim do dia, uma grande chuva com que lavou as ladeiras e a tristeza da cidade. E encheu novamente o rio, que assim teve mais lágrimas para chorar. E por isso que até hoje seu correr tem um ruído manso de pranto deslizando sobre a face.
No mais, não havia razão para chorar. A não ser por aquele movimento de homens, máquinas e terra a persistir abaixo da mata. Já se sentia um cheiro de asfalto? Mas ninguém sentia. A rodovia pretejava e se aplanava, e ninguém via nem ouvia as buzinas que imperceptivelmente já soavam. Porque todos ainda tinham olhos e ouvidos para o trem, que - ele também - escorria sobre o trilho como lágrima sobre o rosto. A despeito da rodovia, ou até por ela, a despeito de alguma saudade já presente, ou igualmente por ela, o trem teimava em cantar e em decantar em apito e fumaça sua impercebida saudade futura.
O irmão do menino também se foi um dia, depois de servir o Exército em Itajubá, onde se amargurou calado pela perspectiva de defrontar irmãos na conturbação causada pela renúncia do Presidente. Foi para São José dos Campos cumprir o sonho modesto e honrado de trabalhar no banco e graças a ele poder viver o sonho maior de se casar com a Sueli. Perdeu o Cid o ajudante, ganharia em breve o Zé de Lima um genro. O outro irmão do menino veio de São Paulo, para onde voltou levando a Lurdinha do Juca Serraria. Os frutos de Seu Antônio cumpriam o desejo inconsciente da velha árvore de fincar raízes na terra que queria fosse sua. Em breve se uniria também a irmã mais velha do menino ao Paulinho do Zé do Tronco. Quem sabe assim, pensava ele, o menino, frustrado jogador de bola, não teria um sobrinho craque como o pai,
responsável, entre outros, pela glória do Botafogo, glorioso local?

A casa de Seu Antônio, partido o filho, conquanto esvaziado um lugar na mesa, continuava feliz, feliz igualmente o menino, conquanto olhasse à noite uma cama vazia ao seu lado, no quarto. Pois que seus dias ainda eram cheios e recheados da amizade de Gatão, de Tonito, de Altamir. E de outra, que, não bastasse ser tão grande, ainda se duplicava nos gêmeos Newton e José, a suscitarem, tão iguais eram, igual ternura no coração do menino, que sabia, no entanto, como poucos, distingui-los um do outro.
Ninguém se apercebeu de que a rodovia se aprontava, asfalto pretinho e cheiroso, já tendo sua própria ponte sobre o Vargem Grande. Porque o trem continuava resfolegando sua saudade, cada vez menos futura, cada vez mais pressentível, ainda impressentida embora.
Foi numa terça-feira, dia de folga de Seu Antônio. Conferente substituto a postos na estação, foi fazer o costumeiro passeio a Itajubá, com o menino a tiracolo. Nesse dia o trem apitava mais triste em cada curva, e sua fumaça parecia um nevoeiro de lágrimas vertidas para cima. O menino o sentiu como algo diferente que sentia, semelhante ao que sentira quando se fora o irmão embora. Foi constrangedor, de tão melancólico, o silêncio ao lado da caixa d'água.
De mais água parecia carecer a máquina. Por quê? Mais água verteria para o céu? Quão contundente o barulho ritmado das rodas sobre o trilho! A paisagem parecia chorar, o gado berrava triste nos currais, à passagem do comboio. A cascata ficara irremediavelmente para trás, num passado de lágrimas derramadas aos borbotões. Passava o trem, e quem passava pela janela era a alegria de alguns anos, tão poucos, tão densos, entretanto... Estação Dias parecia apalermada. Ou não passaria tudo de impressão do menino? O pai do menino calado na poltrona. Não houve prosa nem com o Antônio Gomes na plataforma nem com o chefe de trem no vagão. Nem mesmo pé-de-moleque em Piranguinho, estaria doente o pretinho? Os
passageiros calados. O chapéu de Seu Antônio, aba quebrada sobre a testa. Tão taciturno, o pai do menino... A paisagem passando na janela...

Foi lancinante o apito do trem na Boa Vista. Ou não se trataria também de impressão do menino? O menino igualmente calado. Adivinhando um pranto?O trem freou, rangeu as rodas sobre os trilhos e expeliu fumaça para os lados na plataforma como se se tratasse de um touro ferido a reagir e bufar tardiamente. Seu Antônio apeou, os passageiros apearam, sem se darem conta da reação do trem, apenas incrustada no coração do menino, não saberia ele no momento dizer por quê, do mesmo modo como desconhecia então a razão por que a paisagem vista da janela do trem aquele dia parecia pintada por pálidas cores de saudade, mais pálidas que as nuvens fugidias do céu. Foi quando o Aurílio, o chefe da estação de Itajubá, refestelado no banco da plataforma, onde rodava com a língua um palito entre os dentes, se dirigiu a Seu Antônio chamando-o pelo nome por que o chamavam os colegas:
- Eh, Cardosinho, como é que você vai voltar hoje?
Cardosinho ostentava no rosto a surpresa decorrente da ingenuidade. Toldaram-lhe, por certo, a razão aqueles anos de tanto sentimento e encanto.
Descobrindo a calva e segurando a aba do chapéu com a mão canhota, a mesma que manipulara por aqueles anos todos o telégrafo da estação, olhou os olhos de Aurílio como criança olha os olhos do pai, a pedir explicação sobre assunto desconhecido, e murmurou apenas:
-Uai, porquê?
- Não tem mais trem, não - tornou Aurílio impassível, brandindo uma folha de papel - tá aqui o telegrama. Acabou o ramal, o Governo decretou.

Governo impiedoso, a decretar a morte de um tempo feliz e consigo a saudade! O rosto de Seu Antônio, acabrunhado e contrafeito, desfeito no golpe o sorriso costumeiro, anuviou-se, percebeu-o e sentiu-o o menino, sentindo aninhar-se no peito como imensamente presente a saudade tanto tempo insinuada pelo trem como futura, sem que ninguém nunca o percebesse.
Decepcionado, Seu Antônio observou candidamente o que se poderia esperar naquelas circunstâncias de um homem puro repentinamente feito criança a quem arrebataram o brinquedo:
- Uai, eu volto de ônibus.
Só então se deu conta do movimento de homens, máquinas e terra visto do fundo de sua casa, do alto da escada, da porta da cozinha. Saindo da estação, ainda amarfanhando com a mão a aba do chapéu, falou com o menino, como se quisesse dar-lhe satisfação do ocorrido, como se tivesse culpa de estar tanto tempo calado e indiferente ao movimento de terra abaixo da mata:
- É, a rodovia tá pronta, nego.
Nunca mais Brazópolis ouviu o apito do trem.

E Seu Antônio, bem, Seu Antônio, era seu destino acompanhar o apito do trem, para ganhar o pão do menino. E o menino com ele. Foi embora Seu Antônio de coração comprimido pelo apito que não mais se ouvia, E o menino com ele. O menino de coração igualmente apertado. Seu Antônio se foi com o apito do trem. E o menino com ele.
Mas deixasse estar, que o mundo dá muita volta, como o trem. Se o apito do trem se desfez no éter, eis que um dia, independente do apito, ainda lampeiro como um menino, Seu Antônio voltou. De ônibus mesmo, que remédio? Quanto ao menino, bem, o menino, este não voltou. Não lho permitiram as voltas que o mundo deu. De certo modo, porém, nunca deixou de estar em Brazópolis, eis que Brazópolis nunca mais lhe saiu do coração. Nem mesmo com tantas voltas que deu pelo mundo, enquanto o mundo dava as suas próprias. "Onde estiver teu tesouro, ali estará teu coração", foi o que leu um dia na Bíblia emprestada com tantas recomendações pelo Padre Quinzinho, que parecia temer por sua inexata compreensão por parte do menino. Se não fosse por isso, também porque seu coração sempre pulsou junto com o do pai, a nutrir o mesmo amor por um apito de trem e bem assim por um certo lugar plantado sobre colinas onde apenas um coração pulsando assim ainda consegue adivinhar um esmaecido apito de trem.
Seu Antônio voltou e estabeleceu-se com uma lojinha de tecidos e confecções. Nas horas vagas - e estas eram tantas -, quantos dedos de prosa ainda tirou com o Chico Resende, com o Cláudio, com o Lázaro Serpa...

Um dia, foi feito, enfim, cidadão brazopolense, por obra e graça da Câmara de Vereadores, cujo decreto passou, devidamente emoldurado, a guarnecer-lhe a parede da sala, onde ocupava sozinho o lugar de maior destaque. Nesse dia, Seu Antônio, de voz embargada pela emoção, como diria o Dr. Crispim, quedou sentado numa cadeira, forcejando por engolir um prato copioso, enquanto o menino rezava por ele um discurso, na sessão celebrada (é bem o termo exato, pois para Seu Antônio era algo mais que uma missa) no Clube Wenceslau Braz.
O menino, feito homem, não voltou, já se sabe, para ficar, mas quantas vezes ainda voltou para beber com o pai uma santa pinga no bar do Dito Vieira, enquanto se falava muita bobagem, e enquanto ainda mais engastava no peito uma inexprimível ternura pelos amigos do pai e pelo amor que o pai, de sua vez, tinha engastado no peito por uma cidade de viver ameno.

Outras voltas do mundo, porém, e Seu Antônio, já velhinho, teve de ir para Itajubá. Já no fim da vida, nos momentos de lucidez, cada vez mais raros, o que fazia com gosto inexcedível era outra vez encher a boca e o coração para falar:
- Ô nego, Brazópolis, hem, que santo lugar! Que companheirada boa!
E um dia, outro dia, outras tantas voltas de mundo depois, Seu Antônio se foi, de mansinho, e seguramente, por sua pureza, para outro santo lugar, mas nem tão santo, certamente, em sua opinião, como Brazópolis. E nesse dia, nem mesmo soou desconsolado um apito de trem, que já nem em Itajubá um apito de trem se fazia ouvir. Nem em Piranguinho, nem mesmo nas alturas de Maria da Fé. Banira-se o trem de todos os rincões, quem sabe num prelúdio de silêncio ao silêncio de Seu Antônio. E só o ouvia quem tem ouvidos de ouvir o silêncio. O menino ouvia ambos os silêncios, e com ele as irmãs do menino, os irmãos do menino, atordoados todos ante o silêncio sucessivo ao silêncio de Dona Nica, responsável, entre outros, pelo silêncio de Seu Antônio.

Deixasse estar, porém, mais uma vez, que nenhum silêncio é definitivo para quem sonha. E um dia destes, ou melhor, uma noite destas, eis que o menino (chamemo-lo ainda assim, a despeito de hoje já avançado em janeiros, cãs e calva, como o pai, até porque seus sonhos, a maioria deles, ainda são de menino apaixonado), o menino sonhou com Seu Antônio, a lhe contar histórias do lugar onde está. Disse, por exemplo, que Padre Quinzinho celebra missa para os santos todo santo dia, enquanto Waldemar Mendonça ensina hinos aos anjos e Onofre da Candinha os acompanha ao cavaquinho. Disse mais, que sempre vê Antônio Noronha sugerindo rimas a Deus, quando este, em seu eterno trabalho de criação, inventa outras cascatas por outros mundos afora. E que Chico Resende, com aquele seu cabelo branco como paina, até hoje, ainda que nem de longe veja por isso ensombrecida sua felicidade, não se conforma com a renúncia do Jânio Quadros, entoando vez por outra seu lamento preferido:
- Justamente quando a UDN alcançou o poder...
Ao que Zé do Tronco objeta sempre, de seu canto e de sua vez, arrastando a voz na garganta, como era seu jeito de falar:
- Não interessa! O melhor presidente foi o Juscelino!
Mas disse ainda mais Seu Antônio. Ou pediu mais:
- Ô nego, ocê, que gosta de escrever, bem que podia escrever por mim alguma coisa agradecendo àquele povo bom de Brazópolis - e a esta palavra encheu novamente a boca e o coração e o sonho do menino - a acolhida e o carinho que me deu...

E mais não falou, até porque falar não mais podia, nem mesmo em sonho, embargado outra vez pela emoção, que ainda então, mesmo no céu, lhe tornava os olhos rasos d'água.
Qualquer hora dessas, o menino aponta lá em cima, no Hospital, desce a Avenida, atravessa a Praça e leva debaixo do braço umas folhas de papel escritas com duplo sentimento e um só sentido. E aproveita para, honrando a benfazeja tradição iniciada pelo pai, e como se descesse do trem à plataforma de Estação Dias, tirar dois dedos de prosa com o filho do Antônio Gomes, o Zé Carlos, o melhor amigo do mundo, colhido em terra fértil cujo principal fruto é este: amigos. Brazopolense, o amigo. Como brazopolense quisera ser o menino. Como brazopolense quisera ser Seu Antônio.

Na volta, outra vez no alto da Avenida, o menino - pois que persiste em ser romântico e sonhador esse discípulo de Antônio Noronha - olhará para baixo e ouvirá - decerto que ouvirá - de mistura com o ar frio da noite, um apito de trem cortando a noite. E tremulando as águas do Vargem Grande.


FIM

Rio de Janeiro, de 26/5 a 6/6/2003.

Um comentário:

M.P.N disse...

Seu Totonho e a Dona Nica.
Tinha a Gaída, a Lena, Edinho,Tonico,
Era uma rua encantada, perto da D. Cotinha.

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