-Ô Don'Maria, ô Don'Maria, ô Don'Maria...
Era a Dita chegando e chamando minha mãe num codinome que só ela conhecia: Don'Maria. Claro está que minha mãe não se chamava Maria, mas, fique claro também que, com certeza, era o máximo que ela conseguia expressar.
A Dita era morenona, altona, compridona, espivitadona, conversadeira, cheia de causos e de causas.
-Causa di quê se deu isso, Don'Maria? - perguntava sempre.
Imagine se a Dita era capaz de chegar em casa sem qualquer coisa na mão: uma muda de pranta, um pesinho de fror, um gainho de arruda (pra sorte!), uns bolinho de chuva, metadim de um quêijo, um pedaço di bolo, uma lasquinha de árvri (pra remédio!), um dedim de prosa. Dita nunca chegava... só ela. Era sempre um tanto a mais que ela. Já não bastasse tudo o que era, dela vinha sempre algo mais. Dita era sempre mais, que ela só.
Belo dia, foi a Aparecida do Norte na Romaria do Padre. Bela lembrança! Monsenhor organi-zava romarias memoráveis toda última segunda-feira do mês de agosto, de todo ano, cho-vesse ou fizesse sol. (Um dia, ainda conto a chegada de uma delas.) Dita, que não perdia nem enterro de anjinho, foi lá.
Dias depois – claro – chegou com lembrancinha para minha mãe.
-Óia que beleza, Don'Maria! Trouxe pra senhora.
-Ah! Não precisava, Dita – mas foi logo abrindo.
E Dita, que não perdia nenhum detalhe, não anunciava espera nem esperava pedir, destampou a contar, timtimportimtim, cada coisa que havia feito na “Capela”.
-Andei nas lojinha toda, subi e desci os morro tudo, andei de bonde, comi algodão doce, fui na casa do padre Vitu e até vi ele atravessando a praça. Corri lá, falei com ele, deu uma bênção especial pra mim. Óia, Don'Maria, ganhei até medalhinha! - e mostrou.
Minha mãe já ia achando tudo de uma beleza sem atitude, quando uma dúvida riscou o céu de sua alma como um raio anuncia a trovoada. Tratava-se da salvação daquela pobre alma!
-Dita, você foi na igreja? Beijou a Santa?
Rápido feito corisco, ela respondeu:
-Não deu tempo, Don'Maria, Faltou só isso!
-Uai! Mas o que você foi fazer lá, então, mulher?
-Fui cumprir promessa, Don'Maria.
-Mas que promessa é essa, Dita?
E Dita dispensou a explicação requerida com a mesma rapidez com que compunha os fatos.
-Ir feito morta e voltar feito morta.
Cá entre nós, cabe dentro de alguém imaginar que a promessa fosse essa?
Não deixemos dúvida, porque a dúvida é a mãe do vício. E Dita tratou de não deixar. Jogou-se na primeira poltrona, estrebuchou feito morta, fechou os olhos, entortou a boca e ficou lá. Daquele jeito. Feito morta!
Essa não é para entender. É pra decorar.
E minha mãe até perguntou:
-Dita, quem enfiou isso na sua cabeça?
-A Zezé tictac – respondeu.
-Ah! Então ta explicado! - concluiu minha mãe.
Se a Zezé tictac tinha falado, quem haveria nesse mundo de contestar?
-Óia, Don'Maria. Ela também fez a promessa. Mas não agüentou cumprir na ida. Só na volta.
-Só na volta, Dita?
-É! Ela bebeu uns gole, amontoou no banco e roncou até babar. Feito morta!
E Dita completou, com toda piedade do mundo:
-Mas acho que a promessa dela não valeu, né, Don'Maria?
-Sei não, Dita! Sei não – respondeu minha mãe.
-Vixi! Então agora só no ano que vem! Mas não será tempo demais pra esperar, Don'Mari-a?!
-Sei não, Dita! Sei não.
Renato Lôbo é psicanalista em São José dos Campos
3 comentários:
Renato, seus textos nos faz viajar ao passado e lembrar coisas que estavam guardadas dentro da gente. Escreva mais, sempre mais...um abraço!
Lembro-me bem da dita Broto...grande figura!
Poxa Renato fiquei muita feliz e emocionada em ler o seu texto sobre a Dita Brota, foi muito tempo minha vizinha, adoravamos ela, principalmente quando ela estava com a "expressão alta" era uma locura...Abraços. Angela.
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