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27 de agosto de 2013

SUBVERSIVA CUMPLICIDADE (4) - Renato Lobo


Perceberam as vicissitudes pelas quais a parceria humana tem passado nesses séculos de História e civilização ocidental? Primeiro, foi excluída; depois, tolerada; em seguida, cooptada. Nada disso produziu resultados satisfatórios secundários conforme os objetivos primários do status dominante. Trocando em miúdos: a parceria humana continuou irresistível, irreprimível e subversiva, movida por força interna suficiente para se manter e permanecer: verga, mas não quebra. Aí, o poder teve de mudar o discurso. E esse é o ponto mais importante da questão. (Todo o falatório anterior só tem razão se você chegar até aqui.)

Então...

Depois de não conseguir eliminar o casamento e depois de não conseguir controlar o casamento, as autoridades desistem e abraçam plenamente, o quê? O casamento. Ferdinand Mount diz que isso equivale a assinar um “tratado de paz unilateral”. E aí é que vem o estágio ainda mais esdrúxulo: como um mecanismo de relógio e investidos não sei de que poder, as instituições tentarão cooptar a noção de matrimônio, dizendo que foram elas que inventaram o casamento. É isso mesmo. É isso, por exemplo, que a ala cristã conservadora vem fazendo no mundo ocidental há vários séculos. Ela vem agindo como se tivesse criado pessoalmente toda a tradição do casamento e dos valores familiares, quando, na verdade, foi essa mesma facção que começou com um ataque bastante intenso ao casamento e aos valores da família humana. Não era pra ser celibatário por amor a sei lá o quê? Então. Que história é essa de “fomos nós que...”?

Esse mesmo padrão aconteceu com os soviéticos e com os chineses no início do século XX. Primeiro, os comunistas tentaram eliminar o casamento; depois, tentaram controlar o casamento; por fim, fabricaram toda uma nova mitologia para afirmar que “a família” sempre foi a coluna vertebral da boa sociedade comunista; aliás, você não sabia?

Enquanto isso...

Durante toda essa história retorcida, durante todo o vaivém de ditadores, déspotas, padres e agressores (lembram do Frei Cherubino?), o povo continuou se casando, ou seja lá como se queira chamar isso a cada momento. Por mais que as uniões estáveis fossem disfuncionais, tumultuadas e insensatas, ou mesmo secretas, ilegais, sem nome e rebatizadas, todos continuaram a insistir em se fundir (e a se confundir) um com o outro segundo termos próprios. Lidaram com todas as mudanças legais e contornaram todas as restrições limitadoras da sua época para obter o que queriam. Ou simplesmente ignoraram todas as restrições limitadoras da época! Um ministro anglicano da colônia americana de Maryland, em 1750, se queixou que se fosse obrigado a reconhecer como “casados” apenas os casais que tivessem selado oficialmente a situação dentro de uma igreja, teria de considerar bastardos “nove décimos das pessoas daquele condado”.

O fato é que ninguém espera permissão. Todos vão adiante e criam o que precisam. Até os escravos africanos dos primórdios da história norte-americana inventaram uma forma profundamente subversiva de casamento chamada “casamento de vassoura”: o casal pulava sobre um cabo de vassoura enviesado num portal e se declarava casado. E não havia quem pudesse impedir esses escravos de assumir aquele compromisso oculto num momento de invisibilidade roubada.

Vista sob essa luz, toda a noção de casamento ocidental muda – muda a ponto de parecer revolucionária, da forma mais tranqüila e pessoal. É como se todo quadro histórico se deslocasse um delicado milímetro e, de repente, tudo se alinhasse de outra forma. O casamento legal começa a parecer menos uma instituição – um sistema estrito, estático, tacanho, desumanizador, imposto por autoridades poderosas a indivíduos indefesos – e se torna mais uma concessão bastante desesperada – numa tentativa de autoridades indefesas em monitorar o comportamento incontrolável de dois indivíduos poderosíssimos. É hilário!

Portanto, não somos nós como indivíduos, que devemos nos curvar com desconforto à instituição do casamento. Em vez disso, é a instituição do casamento que tem de se curvar (com desconforto, quem sabe) diante de nós. Afinal “eles” (os poderes constituídos) nunca conseguiram impedir totalmente que “nós” (duas pessoas) interligássemos a nossa vida e criássemos um mundo secreto só nosso. E assim, “eles” acabam não tendo opção senão a de permitir legalmente a “nós” que nos casemos, de algum modo ou forma, por mais restritivas que possam parecer as suas determinações. O governo sai correndo atrás do povo, as igrejas, atrás dos fiéis, se esforçando para acompanhar o ritmo, atrasados e em desespero (por vezes, de forma ineficaz ou até cômica), criando regras e tradições em torno de algo que sempre foi feito e será feito, queiram eles ou não. Porque a coisa já estava aí antes deles. E vai continuar depois.

Não parece absurdo dizer que a sociedade inventou o casamento e depois obrigou os seres humanos a se unirem? É como sugerir que a sociedade inventou os dentistas e depois obrigou as pessoas a ter dentes. Para que fique bem claro, nós inventamos o casamento. Os casais inventaram o casamento. E também inventamos o divórcio, tudo bem? E inventamos também a infidelidade, e o sofrimento romântico. Na verdade, inventamos toda essa bagunça horrível de amor, intimidade, euforia, aversão e fracasso. Mas o mais importante, o mais subversivo, o mais teimoso, é que, no meio disso, inventamos a privacidade. E com isso inventamos a humanidade. A humanidade inventou a humanidade. Não foi nenhuma instituição. Foi cada ilustre Zé-ninguém e cada ilustre Maria-ninguém que um dia ousou dizer pra si mesmos que tinha o direito de simplesmente desejar.

O casamento é um jogo. Eles (os ansiosos e poderosos) dão as regras. Nós (os comuns e subversivos) nos curvamos obedientes a essas regras. E aí vamos para casa e fazemos o que queremos de qualquer jeito, mas sempre do nosso jeito. Esse é o mais básico e vigoroso broto de identidade: a subversiva privacidade, o espaço onde nada e ninguém alcançam.

Lembram do começo da prosa, dos índios de Roraima? Eles sabem disso tudo. Isto é, pelo menos até o homem-branco chegar com relógios-digitais de 1,99, suas catequeses, seus remédios e suas doenças.

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