Cadê
seus sapatos? Foi a primeira coisa que me disse um namorado assim que chegou na
faculdade e me viu descalça. Eles apertam o meu pé, eu respondi. E saí, em
direção ao banheiro. Ele se enfureceu. Você vai ao banheiro sem sapatos? Ué, e
por que não? Porque o banheiro é sujo, oras. Foi o que ele me respondeu, e
respondendo, se colocou na porta do banheiro e proibiu que eu me aliviasse da
grande vontade de fazer xixi. Não lembro bem se cheguei a calçar os sapatos, se
fui ao banheiro, se briguei com o namorado. Lembro que ele não era capaz de
entender a minha necessidade de colocar os pés no chão.
Na
escola já era assim, eu descalça, na hora do recreio, pisando na grama, no
cimento, na terra de chão. Meus amigos me escondiam os sapatos, e lá ia eu,
descalça corredor a fora, até chegar na sala de aula e ver a professora com os
olhos fixos nos meus pés. Esconderam, professora. Era o que eu dizia. Mas não
dizia que esconderam porque eu os deixei em qualquer canto, à mercê de qualquer
um mais mal intencionado.
Meias
e sapatos sempre me causaram desconforto. O pé suado, apertado, querendo tocar
o chão, sentir o calor da terra, o molhado da grama, a lama entrando pelo vão
dos dedos. E quem se atreve a andar descalço na rua? É como andar pelado, todos
olham, estranham, indicam com os olhos que é preciso tomar cuidado. Sabe como
é, caco de vidro, prego enferrujado, cocô de cachorro, mau olhado. Bem vestida
e descalça? Não tem bolha no pé que justifique, nem frieira nem coceira que
permita, só pode ser pinéu.
E
se é assim mesmo, se os pés descalços apontam para o corpo nu, é só no Carnaval
que se permite andar pela avenida com os pés livres de qualquer amarra, de
qualquer instituição. E foi assim que fui feliz nesse carnaval: os pés
descalços tocando pela primeira vez os paralelepípedos da ladeira de
Brazópolis, quando eu me sentia numa ligação profundamente íntima com a cidade
que mais amor me causa, onde melhor me encontro, onde me sinto em casa.
Os
pés livres, tocando o chão da minha terra, me comunicavam, mais uma vez, que é
possível ser ligado a qualquer coisa ou a qualquer lugar, desde que não se
tenha medo de ficar descalço dos pés e despido da alma, livres para amar uma
pessoa, uma cidade ou os dias que se vive durante o carnaval.
Um comentário:
Texto simples, mas, de uma candura que me emocionou.Parabéns Adriana não a conheço mas,acho
que cheguei bem perto de sua alma.
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