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17 de abril de 2013

O SAPATEIRO - Renato Lobo

Cresci ouvindo que os sapateiros eram um pouco filósofos. Nas cidades grandes, a tendência é o seu desaparecimento. Tudo o que faziam virou peça de museu. Mas nas cidades pequenas, o sapateiro ainda exerce a soberania não somente na maneira de abordar, aos sábados, os problemas fundamentais do espírito, mas também no modo parcimonioso e severo com que devolve aos homens a compostura do andar. Afinal, o sapateiro é o homem que mantém minuciosamente guardadas em sua oficina as formas (dos sapatos) de todos os habitantes da cidade. Não são os filósofos nem os teólogos nem os psicólogos que conhecem a alma humana. São os sapateiros. São eles que sabem como andam as coisas.

Tanto que Dito Sapateiro sabia, exatamente, ao lhe entregarem um par de sapatos velhos, qual era o ponto frágil de cada um: onde a justiça coxeia, onde o sapato aperta, para que lado pende o peso da autoridade, que defeito tem o pé da moça “que deu o mau passo”. Com o discernimento que o distinguia em suas horas de trabalho, armado dos instrumentos mais rudimentares, Dito Sapateiro ia tratando de consertar os defeitos e corrigir todo passo em falso, aplicando laboriosas marteladas nos erros e equívocos da humanidade campesina.

Ele era assim. Não acreditava em nada, porque o sapateiro não acredita em nada. Ele sabe que a humanidade gasta os sapatos, leva-os para serem remendados, renovados, mas continua pertinaz jogando-os no lixo, com o solado sempre gasto no mesmo canto, apesar de todos os esforços que os antepassados fizeram para corrigir, nos viventes do futuro, a maneira de andar e pisar, incorrigível, nos mortais do passado. Isso tem jeito? Sei lá, deveria ter.

Por essas e por outras, de tanto conhecer as fraquezas e debilidades dos semelhantes, o sapateiro é um cético. Passa o dia, cumprindo apenas o aprendido dever, quase religioso apesar de cético, de ajustar o que os outros irremediavelmente desajustam. Mas faz isso sem fé, sem convicção, sem ilusões, simplesmente com a esperança de que a morte o encontre fiel às sovelas e às fôrmas e às agulhas e aos fios. E a nada mais.

Mas, aos sábados, quando todos os cidadãos iam fazer suas visitas com os sapatos remendados, exibindo o falso e transitório caminhar que lhes proporcionam um salto novo e uma sola em bom estado, de sua oficina ele os via passar, sorria com dissimulação, e erguia um brinde em louvor dos cambetas, pelo que há de incorrigível nos sapatos rotos e pela honestidade sem véu que só os tortos da vida exibem. Era esse o maior sentido do seu ceticismo; ele era um cético à maneira grega: aquele que observava, que olhava à distância, que não se contaminava de paradigmas bambos.

Na parede central, a sapataria ostentava uma pequena placa rica de avisos sóbrios: O IMPOSSIVEL FAZEMOS NA HORA. O MILAGRE DEMORA UM POUQUINHO MAIS. Será que ele também queria seu tempo e sua vida e nem um nem outro quiseram mais a ele? Era tão... sapateiro... que a muitos custava pensar que também ele escondesse desejos.

Daí, cansado de conhecer o mundo pela sola do sapato dos outros, Dito Sapateiro, um dia, se foi. Para andar com os próprios pés. Quis ir calçado, com o melhor sapato, aquele que nunca conhecera o pó das ruas, guardado na esperança daquele dia, quando nunca mais as solas seriam gastas de andar em vão. Mas não foi.

Fizeram velório, oficio funerário e enterro digno de bispo. Todos da cidade foram reverenciar, pela derradeira vez, aquele que não dera asas aos pés, mas à cabeça; os pés, coitados, esses andam, mas é só para a cabeça voar. Naquele ato, não faltou viva alma. Da senhora do prefeito, de quem Dito Sapateiro limpou e pintou a sandália suja de lama, à do padre (ôps!) a quem Dito Sapateiro consertou a vida, também, enlameada, todos e todas, renderam suas últimas e justas homenagens a quem lhes proporcionou a ortodoxia do andar. À virada da praça, enquanto o féretro subia a rua que conduz à última estância, dobraram os sinos da matriz em repicado e triste som, o último toque de quem encomenda uma alma e seus desejos e seus segredos.

E assim Dito Sapateiro cumpriu a sina integralmente. Veio quando teve de vir, ficou quanto teve de ficar, foi quando precisou que não mais precisassem dele. Só lhe falou ir calçado. No único par de meias que encontraram em condições de lhe calçar o pé defunto, cada meia foi de uma cor. Cobriram-lhe essa vergonha com flores improvisadas que a vizinhança dispôs, e ele seguiu descalço.

Cumpriu sua sina. Integralmente. A sina de quem garante os pés alheios: a de quase nunca garantir os seus.

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