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9 de agosto de 2012

APENAS UMA JANELA * - Renato Lôbo

É de tarde, em julho – e já faz tempo – eu subi a encosta do monte, em frente a minha terra – a montanha onde o sol se põe. Na medida em que subia, fui fotografando impressões de um momento único, e fui me erguendo com ele. A máquina nem era “essa coisa” nem as fotos saíram “essas coisas”. Por sorte, ainda as tenho. Passaram a ser um registro, histórico, do dia em que subi à montanha. Quando subi, era um. Ao descer, já era outro.
Nunca mais subi à montanha onde o sol se põe. Em compensação, nunca mais saí dali. Estou lá, quando escrevo, quando penso, quando sonho. A montanha onde o sol se põe é também a montanha onde ele nasce dentro de mim. É a montanha de frente para minha terra: a primeira a vê-la quando o sol nasce; a última a se despedir dela, quando ele se põe. A montanha é a minha montanha. A terra é a minha terra.
Minha terra! De Chico Braz a outro Chico, Dom Francisco (que tentação chamá-lo ainda “Francisquinho”!), quantos muitos outros filhos, ilustres, e quantos outros, ilustres desconhecidos, gente comum do dia-a-dia, carpiu esse chão, plantou feijão, chorou quando a chuva não veio e sorriu quando ela caiu mansa, criadeira. Incontáveis nomes, incontáveis vidas, incontáveis histórias. Nomes sem placa, sem estátua, aplauso, reconhecimento. Nomes sem nome. Maravilhosos e anônimos!
Há vultos que se erguem em cada esquina para abençoar os passantes. Apressados, dispersivos, ofegantes. Muitos, eu vi. Outros, apenas ouvi. Na realidade ou na fantasia ou nos dois lados do ser, todos fizeram parte do nosso ser. Gente de todo tipo, de todos os naipes, de todos os sons. Escala musical de dó a dó. Nenhum mais importante que outro. Grandes nomes... Gente humilde. Árvores frondosas...
Grama verde. Ouro reluzente... Cascalho que esconde ouro. Tudo gente. Se as estrelas mudassem de lugar, as que ficam por sobre lá, comadres olheiras, jamais de lá se afastariam.
De todos os nomes que povoam minha cidade interna, é como se um deles ainda visse, na névoa da manhã, sozinho, subindo a escada da Matriz. A mesma batina, o mesmo ar franzino, a mesma comunhão aos que não podiam esperar pela missa – naquele tempo, havia essas concessões, de graça. Um grande homem, o Padre Quinzinho.
Atrás dessa lembrança, vem outra, vem outra... Isso é como pérola que escapou do colar.
Elisa Noronha: agora, me digam como definir uma estrela? E D. Titi, que nunca falou mal de ninguém? E D. Sylvia, que nunca saiu de casa sem se arrumar no traje? E D. Maria, que todo ano me liga. Santa Renó, e o sentido da vida num leito de dor. D. Maria José – a vó-tia-Mizé, mãe do padre, mãe do ano, de todos os anos, e de muita gente, inclusive eu. Eva, artista da merenda escolar e da avenida. A Júlia e a Dóca e o andor de São Benedito, que saía à frente, fosse qual fosse o santo titular: segredo pra não chover na procissão. Julita, Chiquita Parteira, Zefina Benzedeira e a Comadre Laida, que cantava! Helena Rosa, memória viva de todas as datas, e a outra Helena... que pena, queria lembrar! E a risada da Dôla! E o Zezinho Barbeiro! Dona Isaura e todas as outras donas: Marieta, Nenzinha, Jurecê, Dea Stussi, Alexandrina, Regina Rosa, Teresinha Serpa, Eneida, Lourdes Vergueiro, Luzia Visotto, Anunciata, Zilda, Nilda... tantas outras donas! Elas esculpiram nossas almas desde a manhã da vida. Ia esquecendo! Meu Deus! Como poderia? D. Georgina, minha diretora. E o Curinga, digo, Américo. E tanta gente mais. Melhor abrir outro parágrafo... Melhor tomar um cafezinho.
Melhor não ficar dúvida. Não distingo aqui quem está vivo de quem nunca morreu, fora ou dentro de mim. Quem vive do lado de fora, quem vive do lado de dentro, parece tudo a mesma coisa, da mesma matéria – minto – da mesma poesia. Já não sei mais quem está por aí e quem ainda continua, mesmo quando não se vê.
Tião da Água, Edésio, Bambolê, Jaú Ferreira, Dita Broto, Raimundo do Cinema, Nambu e Nambuzinho, Joaquim e Teresa Nunes, Dita Saci, Osvaldo Peteca, Sapinho, Avião, Isolina (sempre noiva), Maria Pidonha, Justino Cego, Chico Boiota, Zequinha Gomes, Zequinha Bebiano, Zé da Fazenda, Zé Visotto, Vicente Relojoeiro, Jucabé... E o melhor de todos: Jarbas Guimarães. Que figura! Quantos! Todos vivos onde bata um coração.
Essa terra tem palmeiras, tem estrelas, patrimônios. Uns tombados, outros caí-dos. Uns em pé, outros, largados. Mas sempre patrimônios. À espera de serem acha-dos, encontrados, re-encontrados.
As montanhas, cafezais, o céu de maio, o frio de junho, e a boa conversa de ju-lho. Praças, “lindas ruas, bem traçadas”, e a lua cheia bem em cima da Matriz. Mas ca-dê? Cadê o Coreto, o Pulinho (“Grêmio, Grêmio, alegria do carnaval...”), e o terço de luz, pendente da igreja nos meses de outubro? Cadê o Rasga-roupa narigudo, linha Brazópolis-Luminosa, a chegada das romarias, os carros-de-boi cantantes, as Roga-ções no gelo das madrugadas de maio? Onde se escondeu a minha infância? E onde foram parar a banca do Dico, o primeiro álbum de figurinhas, a Igreja do Rosário, as aulas de geografia do Déo, os discursos do Noé Serpa, o Cine-Teatro Colored, e o pai-nel de luz atrás do presépio? (Lembram daquela corujinha, num canto do painel, de o-lhar brilhante? Eu esperava, o ano inteiro, por ela.) Onde ficaram o prédio do Fórum, a casa de Wenceslau, as procissões, as coroações, a Banda, o “Para o Ano Sai Melhor”, o pastel do Geraldo? Onde? Cadê?
Claro, ainda estão lá a Ladeira do Banco, a Ladeira do Mercado, a Avenida, a Praça da Estação, o TAB, a loja do Natalino, a padaria do Gino. Ainda existe, reinando absoluto, o são Caetano, lá em cima, o Hospital São Caetano, mais lá em cima, e a pe-dra do Can-can, em cima de tudo. Os vitrais da Matriz, o Vale do Girassol (poesia no nome), o Castelinho, a Fábrica de Doces Sinhá, as abelhas do Mário César, o Mercado, o Observatório, o Colégio Técnico com ares de palácio, o Grupão e o Grupinho. Ainda estão lá a Serra dos Dias, o ipê roxo da entrada, a peroba da mata, o rio Vargem Grande, a orquestra de sapos toda noite e o coral dos galos fechando a madrugada. Da Beira da Linha ao Alto do Querosene, digo, da Glória, o pôr-do-sol cai sobre a cidade feito um casaco de proteção do frio da noite. Visto de onde tudo termina ou de onde tudo começa, por lá, pouco importa. Se sempre começa é porque sempre termina. Se sem-pre termina, é porque vai começar de novo.
E as figurinhas carimbadas que pisaram esses paralelepípedos. Não é em qual-quer álbum que elas vão morar. Helena do Artur da farmácia: poemas e sabedoria. O Vasco e a Suely: notícia da hora, quentinha. Judith Minchetti, Teresa Morais do Joaquim do Clube, Neusa Vicchi. As irmãs do Lar e as do Asilo. E tem a tia Elisa, cozinheira do padre Zé Roberto, que não era de lá, por lá foi ficando... Foi ficando... Ficou. Si-lenciosa. “Quem traz no corpo essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. A palavra explica. Mas é o silêncio que faz entender. Para ela, canto, e meu canto é silêncio, respeito, veneração, eternidade...
Lugares existem que são eternos e o tempo não passa. Lá, o tempo não passa. Se passa, é bem devagarzinho. Pra que passar? Afinal, se “O tempo passa e ninguém perdura, o sapato Souza é o que mais atura”. Quando se volta pra lá, faz-se parte des-sas eternidade, disso que não muda porque não pode nem deve nem consegue mudar. Até as pedras da rua sabem quem somos. Um perfume no ar desvenda um idílio. Quem lá vive, não sente. Só sente quem volta do exílio.
Dessa “eternidade” confeccionou-se um mosaico de pedras diferentes de cores vivas. Lembranças sempre presentes. Presenças sempre lembradas. Ditinha Vilela, espirituosa! E as “Madalenas” da Maria Claudina, que nunca mais pela frente, em lugar nenhum, nem igual nem diferente. As Semanas Santas daquele tempo. E os brinquedos de Natal na loja do Pedro Faria. As “aulas de amor” da D. Regina Brito, onde os “perdidos” se achavam. E o carinho de “algodão-doce” da Tia Rosarita. O Grupo Sol, no primeiro show “Despontando”. A “Imaculada” no forro da Aparecida. As linhas gó-ticas, os sinos da Bélgica e o relógio da Matriz, afinados em tom maior. E o Coral do Zé Vilela e os Festivais de Natal, sem igual. Precisa mais?
Outros nomes, muitos nomes. Há os que nasceram depressa e morreram deva-gar. Há os de fora, que fizeram de lá seu ninho. Dr. Pioli, por exemplo. Há os que volta-ram e os que ainda não. E há os que morrem de vontade de voltar. Há os vivos. E os que não morrem nunca. Os que fizeram o nome da terra e os que fazem, anônimos, uma terra de muitos nomes. Os que a amam e os que “juram” que não. (Só de mentirinha!). Há os que se orgulham de terem nascido e sido registrados lá. E os que nasceram e foram registrados fora de lá. E há, até. Os que nasceram foram de lá e foram para lá, só para serem registrados filhos daquele chão. (Conheço um, deve haver mais). Todos, todos são filhos de lá. Daquela terra que com cem anos deixou de ser mãe, virou avó, pra ficar melhor ainda.
Brazópolis não é um nome, um lugar. É uma metáfora. Tudo cabe, porque tudo é menor.
Agora, pressinto iniciar outra escalada em outra montanha. Atrás dessa encosta, o sol não se põe. Não queima. Não ofusca. É a saudade do futuro, saudade do que se-rá.
Agora, vislumbro apenas uma réstia de luz, claridade tênue que penetra pelo vitral do para-vento, na porta da entrada, e ilumina a face em busca de luz.
Agora, só me vem ao pensamento copiar Elisa Noronha, a inesquecível. Quando chegasse lá e o velho Pedro lhe concedesse o que mais desejasse, diria: “Ah! São Pedro, só uma coisa: uma janela aqui em cima, por onde eu possa ver Brazópolis e escutar a Banda. Apenas uma janela, São Pedro. Sem isso, nem o Céu é céu!”
Ta vendo, Elisa?

* (Texto escrito em 2001, para o livro do centenário de Brazópolis, e revisto, agora.)

4 comentários:

Rita de Cássia Noronha disse...

TEXTO MARAVILHOSO. CHEIO DE ENCANTO E POESIA .NENHUM POETA ,DOS MAIS FAMOSOS, SOUBE FALAR DE SAUDADE QUE FLEXASSE TANTO O CORAÇÃO DE QUEM É BRASOPOLENSE DE VERDADE .PARABÉNS RENATINHO . SÓ VC MESMO PARA FAZER REVIVER TANTA GENTE QUERIDA .

Maria da Gloria Rebelo Faria disse...

Lindo e triste amigo Renato, você só se esqueceu do Oscar Mesquita, dos seus visinhos, Clarice Gonzaga e Joaquim, da familia do Nevinho. Más fiquei emocionada com tudo o que lí sobre a nossa terra. Glorinha Rebelo Faria.

Zélia disse...

Que maravilhosa inspiração Renato! Descrição fiel que até me coloquei no cenário. Parabéns!
Zélia

Anônimo disse...

Obrigado, a todos. Renato.

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