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17 de janeiro de 2011

TRANSCENDÊNCIA – Renato Lôbo

Quase morri de susto quando passei pela recepção do consultório e ali encontrei exemplares de um livrinho devocional sobre um determinado santo, cuja figura foi modificada para atender a interesses populares de mídia milagreira. Em lugar da cruz que o santo segurava – lá onde se escrevia HODIE – colocaram (creia) uma “chave” na mão dele. O santo virou porteiro e “abram-se as portas da esperança!”. Não gostei daquilo!

Quando informei à secretária que Doutora Fulana também não iria gostar, sobretudo, pela manifestação ostensiva de mau gosto explícito, ela me disse:

- Só tem dois de resto! Tinha um monte, e as pessoas levaram tudo.

Concluí: na sede, bebe-se até água de enxurrada.

Isso me deixou pensativo. Talvez mais, especulativo. Perdoem-me a redundância, quase tautológica, mas o que pensar disso? Do protestantismo selvagem para o catolicismo selvagem? Vale tudo?

Mas o vale tudo não vale nada, a não ser pelo preço do cento do livrinho conferido no referido exemplar. E um adendo: caso o cliente queira 100 “chavinhas” coladas à figura do santo, o valor dobra. Só faltou a frase de ouro: “É tiro e queda”. No final, surge a foto de um casal, com o título auto-conferido de “O casal 19 do santo tal”.

Aonde isso vai parar? Isso vai parar?

Olha, gente, eu não sou contra manifestações de devoção popular. Sou devoto de Santo Antonio, ora! E a História do Brasil nos conta que se não fossem os missionários Lazaristas e Redentoristas espalhando e sustentando as devoções populares por esse Brasilsão afora, a religião católica teria desaparecido e, convenhamos, qualquer religião que se mostre séria, presta um grande benefício à sociedade humana, sobretudo, na hora daquele consolo para o qual não há nenhum consolo. Na hora da grande perda e da grande dor, ninguém quer respostas, a gente quer garantias. Mais do que qualquer outra e não há como negar, nessas horas, a religião oferece tais garantias.

Mas é preciso que a religião se queira séria. É preciso que ela esteja a serviço da transcendência. E aí fui pensar, justamente, na transcendência.

Somos transcendentes. Nascemos, vivemos e morremos transcendentes. Pouco importa se freqüentamos ou não sociedades religiosas e associações afins. Não é preciso desfilar de camiseta com estampa religiosa para ser religioso. Não faz muita diferença o tamanho, o material e a confecção da medalha ou da cruz que se impunha ao peito. Também em nada se alteram os movimentos de rotação e translação da Terra se a medalha foi benta ou não, e onde foi, e por quem o foi.

- A minha medalha foi benta pelo papa. Benta pelo Bento!

- Tsss! A minha foi benta pelo Padre Quinzinho. Confio mais nesta.

Entende o que quero dizer? Transcendência não vem de fora. É um trem imanente ao humano. Já vem no original de fábrica da confecção humana. Não é acessório. Se fosse, poderia ser descartado, como, aliás, qualquer acessório. Mas não é.

E onde aparece esse trem? A transcendência dá as caras em todas as incontáveis e incontabilizáveis situações onde o humano salta por cima da matéria e consegue voar, ainda que de pé no chão. Só o humano é capaz disso. E é por ser capaz disso que se torna humano.

Quando a mãe esbodegada de tão cansada do tanto a cuidar, ainda assim, à noite, ao lado do filho doente, garante amor suficiente para cantar a melodia que o faça adormecer... isso é transcendência. Ela voou por cima dela.

Quando os pais, que esperaram aquele momentosinho para ficarem a sós e poderem namorar um bocadinho, têm de ceder outra vez essa vez para acudir o filho que caiu de moto e justamente aquele e naquelas condições em que eles falaram que não iria dar certo sair naquela hora, e fazem isso com amor... isso é transcendência. Eles passaram além deles.

Toda vez que alguém sai de si e se coloca diante do outro e faz dele o centro daquilo que, em outros tempos, só teria sido o próprio umbigo dilatado e sempre faminto de compensações... isso é transcendência. Alguém avançou além de si mesmo.

Toda vez que alguém percebe – não estou falando de crença, estou falando de percepção – toda vez que alguém percebe que, se olhar por cima do muro da realidade nua e crua poderá enxergar além dos bloqueados limites da existência... isso é transcendência. Transcendência é ir além, sempre além, mais além.

Papai dizia que quando a gente se casa, passa a comer os pedaços pequenos do frango, e quando a gente tem filhos fica só com os ossos. Pois é! Isso também não é transcendência? Chupar osso para deixar a carne melhor do frango para os filhos, é ir além: além do frango, da mesa e da fome. Além da matéria. Isso é transcendência.

Não me admira que as pessoas tenham se encurralado dentro de concepções limitadas a respeito de si mesmas, do mundo e de Deus. Afinal, nem sempre é possível abandonar as clareiras conhecidas, confortáveis e seguras da mata. O que me causa admiração é a quantidade de gente tirando proveito, justamente, da fragilidade humana, de seus medos, dúvidas e incertezas. Com a melhor das intenções também se induz à alienação e se acumula caminhões de ignorância e erro. De boas intenções o inferno está cheio. E tudo indica que a Terra também, e, também das mesmas boas intenções, que mais tarde farão fila pra lotear o inferno. Caso ele exista. Como dizia papai: Não acredito, mas também não abuso!

Nessa hora, o que sobra, senão a honestidade? Em seu nome, é urgente perguntar em quê acreditar? No deus dos filósofos, dos teólogos, dos místicos, da gente simples? Nos dias de hoje, em quê e em quem acreditar?

Caraca!

Ainda pensando nisso, liguei a TV e revi todas as cenas das inundações no RJ, e me dei conta de que eu estava cômodo, quente, seco e alimentado dentro de casa. Aí, me perguntei: e se eu estivesse lá? Em quê acreditaria? Parece cômodo cavoucar questionamentos de um sofá quente e seco. Se a barriga estiver cheia, fica ainda mais fácil! Se nenhum problema substancial ameaçar a homeostase da vida... moleza! Mas, e se eu estivesse lá? Em quê acreditaria? Será que eu ficaria mais tranqüilo com uma “chavinha” do santo na mão, para fechar as portas da angústia e abrir as da esperança? De novo, a maldita honestidade: não sei.

Seja como for, depois que tudo passasse, depois que do rastro daquele dilúvio de água e lama brotasse, outra vez, a esperança e com ela a vida, eu ia querer que houvesse outra chave, uma chave maior, a chave do entendimento, para que eu pudesse captar tudo o que a vida quer de mim, antes que ela se torne medíocre, e tudo que eu preciso fazer dela, pelo simples fato de estar aqui, antes que eu também me torne medíocre.

Não sei, para você. Para mim, isso é transcendência. E boa parte da sobra é matéria. Inclusive a “chavinha”...

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