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2 de janeiro de 2011

COMO A VIDA PODE SER BOA! – Renato Lôbo

Quando ela emplacou os 80, fui visitá-la. Uma festança! Rolou de tudo: Chico, Milton, Elis, Calcanhoto e umas gentes diferentes que eu nem imaginava que existissem. Para dar uma idéia aproximada da homenageada, quando lá cheguei, já deparei com ela “meia de pileque”, e quando saí, rolava o maior carnaval. E para uma idéia ainda melhor, transcrevo aqui um fragmento de conversa, com uma declaração solene da parte dela:

- Agora que alcancei a viuvez, não quero mais saber de casamento, nem morta. Agora, só quero mesmo é “ficar”!

80 anos!

Dá pra imaginar? Tia Dona era assim: a primeira dama da modernidade, para quem o pior dos pecados, o pecado mortal, o pecadão sem perdão, não era perder a virgindade, longe disso, era perder a contemporaneidade.

- Perder isso, meu filho, é muito pior que a morte! É a morte em vida.

A grande cruzada daquela vida era o presente. Uma tarde, divagando sobre o medo da inclemente passagem do tempo, ela me segredou:

- Não suporto essa bobagem de viver do passado! O que eu mais quero na vida é o futuro. Tenho tantos projetos!

80 anos!

E foi assim que ela me disse o que pensava da imensa fragilidade da existência humana – o “caniço pensante” de Pascal. Se eu tentar resumir, serei medíocre. Se tentar reproduzir, serei infiel. Se não transmitir, serei ingrato.

Observe.

A vida se divide em três trintas, disse-me ela. Você ganhou só os primeiros trinta. Com sorte, pode acrescentar (pelo menos!) duas vezes mais o saldo de entrada. Claro, que o filme pode acabar antes. Mas é um péssimo negócio. Bom mesmo é ficar até a luz do cinema acender. Para ela, na vida como no cinema, no fim, a luz sempre se acende. E o melhor de tudo é sair da sala da vida com saudade dela, como acontece no final de todo filme bom.

Vamos lá! Com sorte, a vida se divide em três trintas.

Nos primeiros trinta, a gente nasce, cresce e rala... Deus do Céu, como rala! Nos primeiros anos de vida, o que prometia ser o Jardim do Éden, na verdade, é muito mais uma agenda formal de compromissos e habilitações com o próprio desenvolvimento, enquanto morador do planeta. “Não mexe aí!”, “Reparte com seu irmão!”, “Não fura o olho dele!”, “Não põe a mão aí que é feio!”, “Não faz isso, não faz aquilo”, “Come isso, bebe aquilo, veste aquilo outro...” É preciso até aprender a fazer cocô no lugar certo! Caraca!

Pensa que terminou? Capaz! Aí vem a escola: a primeira grande explosão de novidade e a primeira exposição ao outro e a todos os sarampos, piolhos, caxumbas, brigas e esfolamentos. E provas, tarefas escolares, redações para serem lidas em pé, exercícios de matemática... Qué qué isso, minha gente!

Pensa que terminou? Aí vem o ensino médio que deveria ter o nome mudado pra “ensino tédio”. É um horror ter de repetir tudo de novo, com aqueles professores que nem bem são do andar de cima nem bem são do andar de baixo, e o pobre coitado do meio sem saber em que andar está.

E depois, a faculdade... Mas a faculdade, pelo menos, é a melhor parte desses primeiros trinta. Muita balada, muito sexo e rocknrolls. Tia Dona estava por dentro disso tudo. Lembra da contemporaneidade?

Daí, quando termina a faculdade, o sujeito tem de procurar emprego e, a menos que tenha pai rico, submeter-se a qualquer primeira coisa que apareça. E tem outra. É nessa mesma época, que irrompe um sintoma esquisito que faz todo mundo se apaixonar, acasalar e procriar. E a nem bem formada gente se apaixona e se acasala e já bem antes de bater na marca dos primeiros trinta, procria. E a prole aterrissa prolífica, prolixa e pródiga. E tudo que parecia fazer parte de um passado aterrador, recomeça outra vez: o primeiro choro, a primeira mamada, o primeiro cocô, o primeiro dente, a primeira escola, cursinho, faculdade e, lá vem de novo, o primeiro amor. Caramba! Fecha logo esses primeiros trinta!

E abra-se a cortina dos segundos trintas, os do meio, que é quando a onça vai beber água!

Ao completar trinta e uns, geralmente, o sujeito já tem um incipiente diploma, uma incipiente carreira, uma incipiente família e uma incipiente vida. Agora é que as coisas vão começar pra valer! Na década fatal, entre os 30 e os 40, cada um precisa provar a que veio. O diploma tem de virar uma boa colocação, a carreira tem de deslanchar, a casa pequena se transformar numa maior ou, quem sabe, duas, e o carro do ano passado precisa, no mínimo, virar do ano seguinte. Lá pelos 40 anos, há provas e tarefas diante das quais as do vestibular e da faculdade ficaram no chinelo. Que saudade daqueles bons tempos das aulas e da gandaia!

Soa a sinere, sinal de alerta: surgem na curva os temidos cinqüenta! À medida que eles se aproximam e, nessa, o sujeito já ganhou uma respeitável proeminência abdominal, o carrossel de ilusões começa a despencar e vai desmontando, rápido, monótono e cruel. A grande urgência dos cinqüenta anos é segurar o tempo. O grande problema é que quanto mais a gente segura, mais depressa ele escorre. Quando os famigerados sessenta batem na trave, cada um pensa que o melhor da vida já passou.

Mas aí é que ta: é mentira! É a grande mentira! Garantiu-me ela.

Quando os sessenta chegam, já na porta de entrada eles anunciam a que vieram: vieram para libertar, livrar cada sujeito das ilusões que o atulharam a vida inteira, que nem sofá velho na frente da porta. Jogar fora as ilusões, desatar o peso da vida e sua infelicidade mórbida, desfazer-se de toda inerente insegurança que ronda a efêmera existência, tornar a vida um closet-clean, essa é a grande promessa, já em parte realizada, dos sessenta. Daí pra frente, nada de deixar pra depois, nada de fazer bobagem e, sobretudo, nada de acumular tranqueira. Nenhuma! Daí pra frente, é proibido proibir(-se).

Essa é a bem-aventurança dos últimos três trinta. A partir daí, quem ganhou, ganhou. Quem perdeu, perdeu. Quem comprou, comprou. Quem vendeu, vendeu. Quem chorou, viu que lágrimas lavam. Quem sorriu, aprendeu que o riso alimenta. Quem amou, percebeu que o amor faz bem ao coração. Quem se desiludiu, descobriu que as ervas amargas consertam o estômago. E descobriu a esperança. Ô meu Deus! Adélia estava certa: "O encardido da alma, um pouco de esperança lava".Do lado de lá dessa porteira abre-se a melhor das idades: aquela em que ninguém espera mais nada de ninguém, e porque não espera mais nada, tudo alcança, tudo tem.

Até os 30, a gente não pode cumprimentar qualquer um, de qualquer jeito. Dos 30 em diante, é preciso aprender como, quando e a quem reservar a atenção. Depois dos 60, você pode dar bom dia a cavalo que não vai causar nenhum arranhão à imagem que construiu de si mesmo ou da que os outros têm de você. A gente ta nem aí. Esse é o grande segredo da aventura de atravessar os sessenta: a liberdade. De ser a si mesmo. De ter a si mesmo. De dar a si mesmo.

Pena de demore tanto! Pena que custe tanto! Pena que implique o risco tamanho de viver sem ver, de passar por aí sem notar a passagem, de atravessar a ponte e, só quando olhar atrás, perceber que desceu do lado errado do rio.

É urgente descobrir onde estamos, aonde vamos e o que fazemos...

- Porque tudo passa tão rápido, meu filho. Tão rápido! É água escorrendo pelo vão dos dedos. Concluiu ela.

E pensar que essa foi uma conversa de uma tarde, numa varanda, comendo bolo de fubá com queijo e bebendo o café que ninguém nesse mundo coava melhor que Tia Dona. O que uma tarde nos dá!

Nunca soube o nome de Tia Dona. Algo me diz que ela se chamava simplesmente Maria. Tia Dona morreu com 99 anos. Bem depois da marca do pênalti dos últimos três trinta.

3 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado, Fátima, pela honra de abrir 2012! Honra e responsa. Longa vida À JANELA! - Renato Lôbo

Fátima Noronha disse...

Eu que tenho que agradecê-lo, Renato, pela sua contribuição. Espero poder continuar tendo a honra de contar com vc, para enriquecer minha "À Janela".

Anônimo disse...

Lindo! Maravilhoso! Fatima da Teresa Moraes

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