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23 de julho de 2010

Padre Zé Roberto - Renato Lôbo


A vida do Padre Zé Roberto dava bem um livro de crônica. Olhos fundos e óculos mais fun-dos ainda, de lentes grossas fundo-de-garrafa. Enxergava bem, só quando queria. Via um mosquito preto numa parede escura. Enxergava um fio de cabelo louro no sol. Mas geralmente, não era assim que a coisa funcionava.

Não bastasse a pseudo-cegueira de teor cíclico e momentâneo, havia também o esquecimento alternativo. Padre Zé esquecia fácil o que não queria lembrar. E dormia no meio da missa. Claro! Levantava-se antes das galinhas para rezar. E rezava. Justiça seja feita, foi um homem de fé.

Aí, na primeira sexta-feira da quaresma inaugurava-se o circuito das Via-Sacras. Igreja cheia, batina, sobrepeliz, microfone e...
- Cadê o livro da reza?
O Sebastião havia esquecido. Sebastião era uma alma boa de sacristão.
- Cadê o livro da reza?
Sem resposta...
- Ah! Vai sem livro mesmo!

- Menina, vem cá!

Padre Zé Roberto pensava alto. E conseguia pensar ainda mais alto de microfone ligado. A menina chamada, naturalmente, pálida de medo, juntou-se a um senhor, pelo menos, quatro vezes o tamanho dela e seis a sua idade, tremendo que nem vara verde.

- Menina, diz pra mim, o que você vê no quadro?
E a menina:
- Tem um sordado!
E ele:
- PRIMEIRA ESTAÇÃO: JESUS DO LADO DE UM SORDADO. E deita falação.

Caminharam até o segundo quadro.
- Menina, o que você vê no quadro?
E ela:
- Tem dois sordado!
- SEGUNDA ESTAÇÃO: JESUS NO MEIO DE DOIS SORDADO. Mais reza e mais falação.

Caminharam até o terceiro quadro.
- Menina, o que você vê no quadro?
- Tem outro sordado!
Aí, ele não agüentou e desabafou em microfone aberto:
- Mas esse trem de via-sacra só tem sordado!

Padre Zé era assim. E pensa que pára aí?
Ele não perdia uma roda de conversa. Numa outra paróquia, antes de são Caetano, estava ele lá, um dia, no meio do conversê, quando chegou um sujeito e anunciou:
- Padre Zé... A Bença, Padre Zé. O Pedro Leopordo tá ruim de tudo. Nas úrtima! Tão chama-no o senhor pra extrema-unção.

Ele já tinha ido lá, semana passada. Não ia querer perder o fio da conversa.
- Ahhh! Tsss! Fala pro Pedro esperar mais um pouco pra morrer. Mais tarde, eu vou.

O enigmático mensageiro, estabelecido conhecedor daquela alma sacerdotal, respirou... sondou... avaliou... mediu... calculou... e soltou a segunda parte da mensagem, guardada para o final, como se fosse um Segredo de Estado, palavra por palavra, soletrando cada sí-laba:
- É! ... Mas já chamaro o Cônego Zequinha... e ele falô que ia...

Isso estuporou no ouvido do Padre Zé, feito traque. E a resposta veio a cavalo:
- Então, tô indo!

O que falta saber, para dar consistência à narrativa, é que (primeiro) o Pedro Leopoldo era um fazendeiro da paróquia vizinha; e (segundo) o Padre Zé Roberto – que depois virou Monsenhor – não desperdiçava uminha só oportunidade de furar as fronteiras da paróquia. E isso deixava o vizinho, Cônego Zequinha, dono da outra freguesia, de pelo eriçado que nem gato quando vê cachorro.
- Onde já se viu? O Zé Roberto invadindo de novo seara alheia! - Ele falou.

E foi. Melhor. E foram. Chegaram juntos. Apearam do cavalo. E quase não passaram na por-ta da sala, quanto tentaram entrar, simultaneamente. Daí a pouco, um de um lado, outro do outro da cama. E, no meio, o Pedro Leopoldo, como diz Sueli, muito mais pra velório que pra piquenique.

Conta a lenda, que o Cônego Zequinha argüiu o praticamente-já-quase-finado dessa forma:
- Pedro Leopordo, você quer receber o meu Cristo ou o Cristo do Zé Roberto?
Ao que Pedro Leopoldo, num fiozinho de voz, já quase noutra, respondeu pausadinho:
- Nesse estado que eu tô... quarqué Cristo serve!

Pensa que pára aí? Pára, não.

Porque na semana anterior, o Padre Zé Roberto já havia furado o bloqueio inter-paroquial e visitado a fazenda, com todos os paramentos de ocasião, pra levar a extrema-unção pro Pe-dro, que já fazia era tempo estava indo dessa pra melhor e nunca ia. E Padre Zé já havia ido arreliado, porque naquele dia fora domingo. E domingo, segundo Padre Zé, não era dia de morrer. Vê se pode!

Sentado na cama, começa o rito da extrema-unção que, antigamente, caso o doente estives-se em condições de responder, abria-se com a solene renúncia do demônio.

- Pedro Leopordo, renuncias a Satanás?
Silêncio.

Padre Zé limpou a garganta.
- Pedro Leopordo, renuncias a Satanás?
Outro silêncio.

Padre Zé alterou a voz um tom acima:
- Pedro Leopordo! Ta me escutando, homem? Renuncias a Satanás?

Pedro Leopoldo abriu os olhos e lentamente confessou a dúvida atroz que lhe atormentava a alma, no mesmo fiozinho de voz, já quase indo:
- Óia só, Padre Zé!... Na situação que eu tô... melhor mêmo é fica de bem co'as duas parti.

Quer saber? Não me esqueço de Padre Zé Roberto nem um dia. Ele me ajuda a entender a alma humana. E mais: me ajuda a questionar o supérfluo das estratégias e logísticas desumanizantes, o caminhão de reuniões absolutamente desnecessárias, o inferno de cronogra-mas não cumpridos, os ideais bombásticos, promessas salvadoras e panacéias cicatrizantes diante de temidas feridas nem bem ainda abertas nem quase nunca fechadas. E decerto com a maior precisão de se abrir.

Não faz muito tempo, essas coisas todas eram – muito bem obrigado – resolvidas por um homem de roupa surrada, pouco conhecedor de matérias doutas e afins, línguas muito menos, a não ser o macarrônico latim do breviário. Mas que conhecia, um por um, cada um dos paroquianos que vivesse, ali, perto dele, porque ele vivia para eles. Havia batizado o pai, o filho, o neto e (se arriscasse) o bisneto! Um por um. Nada de massa anônima. A não ser a que a Elisa fazia, no domingo, com bastante molho e que, por ali, se chamava macarrão-com-frango-solto. E que, decerto essa, não era anônima.

Viva Padre Zé Roberto, Cônego Zequinha, Monsenhor! E todos os outros! Foram eles que construíram as bases escondidas, a partir das quais vieram outros: os que fizeram telhados vistosos. E que, decerto, nunca souberam o que seja abrir o vão de um alicerce bem feito.

2 comentários:

Maria Aparecida Silva Silveira disse...

Engraçada e interessante suas crônicas, Renatinho. Mas queremos saber por onde anda você, o que tem feito?

maria lucia disse...

Me lembro bem do Monsenhor José Roberto!!!
Também tenho uma pra contar.
Num dia de batizados, apareceu um bebezinho com nome de "John Max...". Mons. José Roberto achou o nome estranho. Ensaiou, ensaiou... mas não conseguiu pronunciar o mome do pobrezinho.
Foi batizado por "JOÃO MARCOS".

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