Eu era criança. E o mês de maio era tão frio que, quando a boca soprava, o ar virava fumaça. Frio que doía! Mas havia missa e coroação. E a gente ia, com frio e tudo, à noite, avenida afora, só pra ver a hora em que sinos soassem e pétalas de flor caíssem aos jorros de cima do altar. E a gente assistia com cara de anjo. E como de anjo não tinha nada, pelo menos, assim parecia.
O santuário ficava no canto da cidade. E quando se entrava era como estar não no outro canto, mas em outro mundo. Nas tábuas do forro, de fora afora – e, por milagre, ainda está lá – o quadro da Conceição dominava, rodeada de anjos, de lua debaixo dos pés, e coroa de estrelas à cabeça. E eu que vivia longe, olhava àqueles seres alados, e um deles, de olhos azuis, me transportava para junto de um deles, meus irmãos, que de anjo também não tinha nada.
Na parede do fundo, num altar de madeira, esculpido inteiro em alto relevo, duas longas escadas conduziam ao trono, de onde dezenas de pequenos anjos, subidos altar acima, e desajeitados – como só anjo sabe ser – pisavam na barra das túnicas. Nas mãos um pratinho de pétalas. Será que iam despencar lá de cima? E, se caso caíssem, saberiam voar?
Os anjos, aliás, anjas (eram todas meninas) entravam cantando pelo centro da nave, descuidadas, espalhando sorrisos e a graça da infância, de pétalas que caíam dos pratinhos, como se o chão fosse feito de céu. Uma fila interminável que a bem da verdade, não passava de cinqüenta. Mas que, àquela época, era toda a corte celeste reunida ali, naquela noite, naquela festa, naquele frio e naquele canto isolado do mundo.
Se alguém nunca viu uma coroação na infância, precisa exigir indenização à vida. As coroações eram acontecimentos. Em túnicas brancas e longas asas, meninas louras e more-nas, rodopiavam nos sonhos que só se sonha lá, flutuando no altar, ao redor da rainha. A gente até que sabia que eram as mesmas meninas das brincadeiras de rua. Mas, naquela hora e naquele lugar e daquele jeito, eram anjos e se comportavam como tais.
E vinha a coroação. Cantava-se, cantava-se, cantava-se. E cantava-se. Mas no momento em que uma delas depositava o cetro nas mãos da imagem, o grand finale havia começado. O coração ia a mil. Subia o incenso em fumaça branca, coroinhas alvoroçados caçavam campainhas e outros se dependuravam na corda do sino. Duas meninas, uma de cada lado da rainha, erguiam as mãos. E o que a gente via era a própria transcendência em ato, coisa que jamais iria ver de novo, vida afora. Uma pequena coroa erguida sobre a imagem. Era apenas uma coroa de latão. Mas como brilhava! E os anjos cantavam. E a coroa descia, lentamente. Até repousar numa pequena cabeça coberta de véu. E, aí, ela se tornava rainha outra vez.
Súbito silêncio. E música. E festa. Flores lançadas aos borbotões de sobre o trono da rainha. E a fumaça de incenso, que subindo perfumada, ia se misturar às pétalas, no ar. Coisa de meia dezena de campainhas fazia coro sinos de fora. Foguetes espocavam. De mais longe, vinha o som dos sinos da matriz, majestosa, ecoando saudações ao pequeno santuário da rainha coroada e à festa que lá dentro acontecia. A banda tocava, o povo aplaudia, os coroinhas passavam de um lado a outro em batinas vermelhas. E a gente ria, feliz que só vendo!
Quando tudo terminava, na volta pra casa, no frio da noite, na névoa caindo por sobre a cidade, o coração ia seguro de que, em qualquer dificuldade, as coroações teriam o poder de nos fazer sobreviver.
Passou-se o tempo. Cresci. Que pena!
Já não acredito tanto no poder solucionático de coroações assim. Não creio que elas possam resolver problemas. Que bom se pudessem! Que bom se pudesse estar lá, outra vez, no frio de maio, voltando pelas ruas úmidas de névoa, dormindo acordado com a música dos anjos. A gente cresce. Encaixota a inocência, o dom do encantamento e o melhor de nós mesmos.
Mas nunca, inteiramente. Sempre sobra um espaço íntimo, por menor que seja, onde o encanto sobrevive. Nesse lugar, ainda é possível ouvir cantos de meninas-anjas, ver pétalas dançando na fumaça do incenso, ouvir os mesmos sinos de antes. E a névoa úmida fica menos fria do que parece. Há um lugar de onde ainda é possível enxergar o santuário, e suspirar imaginando que ali exista quem deva ser coroado.
Nesse lugar, onde nunca crescemos, somos preservados da chatice da vida adulta, do terror dos noticiários e do medo que nos assombra. Ali somos conduzidos de volta ao calor de um colo, num lugar privilegiado que nos faça adormecer. Pode ter muitos nomes e rostos diferentes. No fim, todos eles cabem e se cruzam numa expressão só: a terra da gente.
Toda vez que maio chega, de onde estou, volto ao pequeno santuário no canto da cidade, e me ponho a ouvir anjos e sinos, sentir flores e incenso. Sempre que ouço algum canto semelhante ao que lá se ouvia, me pego pensando se ainda existe a mesma coroa cingindo a mesma testa e se ela ainda consegue reproduzir a mesma alegria de antes. Se houver, também haverá quem continue acreditando em tudo quanto ela signifique. E é muito.
Era apenas uma coroa de latão. Eu sei. Mas como brilhava!
Um comentário:
Simplesmente maravilhoso! Quanta inocência relatada com tanta verdade. Me lembrei desse tempo, senti o peito apertar. Lindo Renatinho... Deus lhe inspira quando as suas idéias vão para o papel. Que bom que você nos dá a honra de ler coisas assim. Deus o abençõe!
Postar um comentário
Obrigada por dar a sua opinião.
Elogie, critique, mas faça isso com educação.
- Comentário com palavras de baixo calão será excluído.