MEMÓRIAS
CURTAS
Joaquim Mota de Almeida
Inumeráveis
foram as vezes em que me questionei sobre o porquê de minha mania de coletar
coisas que para os outros são considerados velharias. Eu tinha nove anos e
estava fazendo o primário na escola de Piranguinho. Ela localizava-se nas
imediações da Estação e ficava próxima de um sobrado onde morava Dona Nicota
Gomes e a sua filha Maria José Gomes. Dona Nicota era viúva do Sr. Leonino
Gomes que fora comerciante havia muitos anos passados no andar térreo desse
sobrado. Num determinado dia, ao sair da escola, vi na rua em frente a esse
sobrado um amontoado de papéis e livros que pertenceram ao comércio do Sr.
Leonino. Aproximei-me e percebi que aquele amontoado ali estava para ser
queimado. Pedi, então, a Dona Nicota que me desses aqueles livros para
guardá-los. Ela me respondeu que não, que era velharia e só ocupava lugar.
Nesse instante, a sua filha Maria José perguntou-me para que queria aqueles
livros. Simplesmente respondi que iria guardá-los; ela sorriu e me deu aquele
amontoado todo. Vim buscar a carrocinha de mão em minha casa e pedi ao Zezinho
Monteiro, que trabalhava para os meus pais, que me ajudasse trazer aquela
papelada. Quando cheguei em casa com o carrinho abarrotado de papéis e livros
velhos, minha mãe estrilou e não os deixou entrar. Meu avô, Joaquim Motta, que
estava por perto, prontificou-se a buscar em sua fazenda uma canastra grande
para que eu guardasse a papelada.
A
outra vez em que levei bronca de minha mãe, por causa de papéis e livros
velhos, foi em 1950. Para desocupar lugar, o Sr. Sebastião Pereira Machado,
ex-Subdelegado de Polícia de Piranguinho entre 1930 e 1945, retirou de seu
escritório os papéis e livros de Ocorrências Policiais para incinerá-los.
Pedi-lhe, ele sorriu, perguntou-me se eu pretendia criar um museu e me deu o
material. Meu avô, Joaquim Motta, arranjou-me outra canastra e guardei mais uma
papelada. Não contendo os anseios por coisas do passado, passei a coletar e
arquivar os livros borradores dos estabelecimentos comerciais que existiram em
Piranguinho: livros de anotações de algumas fazendas da região, dezenas de
anotações particulares e várias fotografias antigas.
O
desejo de registrar os acontecimentos de Piranguinho foi despertado em mim
quando, em 1957, as professoras da Escola Mista, Dona Maria José Caridade
Carneiro e Dona Geraldina Carneiro (Dona Lili), me expuseram que a Escola
completaria cinqüenta anos no dia 28 de outubro de 1959 e que elas gostariam de
prestar homenagens à fundadora Almerinda Valente de Lima. O problema era que
não tinham fotografia dela. Dona Lili havia conseguido uma foto da formatura da
primeira turma de alunos da Escola, de 1912. A foto encontrava-se em mau estado
de conservação, mas dava para ver os alunos formandos na frente e por detrás
três adultos: duas mulheres e um homem. Essas mulheres certamente eram as
professoras e uma delas seria a Dona Almerinda. Dona Maria disse-me que havia
levado a foto para o fotógrafo Noronha, em Brazópolis, para que ele a ampliasse
e a tornasse mais nítida, mas ele não dispunha de recursos para atendê-la. Dona
Almerinda morreu em 1914 e não existia mais em Piranguinho alguém que a
conhecera, mas seria muito significativa para a história da Escola a fotografia
de sua fundadora. Fui, então, incumbido de descobrir quem era a Dona Almerinda
e ampliar a sua foto.
Na
ocasião eu tinha um cinema em Piranguinho e com freqüência ia a São Paulo para
contratar os filmes. Numa dessas idas, levei a foto a uma firma especializada
“Fototica”. Ela foi ampliada e projetada numa tela. Observei-a atentamente e
saí de lá preocupado para meditar um pouco. A minha preocupação era de dar o
veredicto final sobre as duas mulheres na foto e qual seria Dona Almerinda.
Voltei novamente a observar a foto, pedi que a ampliasse mais, observei que uma
das mulheres trajava um vestido comum de nossa região e os cabelos presos por
trás em forma de peruca. A outra trajava um vestido com gola alta, usava
brincos e tinha as sobrancelhas aparadas, e isso não era comum em nossa região.
Outro detalhe que observei foi que esta última não estava olhando para a
máquina fotográfica no instante da foto. Já sabia que Dona Almerinda era uma
pessoa viajada e que, antes de ter vindo para Piranguinho, morara no Rio de
Janeiro e, provavelmente, era acostumada ser fotografada. Decidi-me por essa
última. Mandei ampliar a foto, retocá-la, emoldurá-la e a trouxe para
Piranguinho. A partir daí tornou-se o retrato oficial daquela que foi uma
grande benfeitora de nossa cidade.
Desde
então passei a registrar os acontecidos de Piranguinho, coloquei em seqüência
as velhas papeladas que eu havia guardado e continuei coletando ainda mais. Meu
avô Joaquim Motta passou-me os livros borradores da antiga fazenda do Capote;
meu tio Ildefonso Motta emprestou-me o retrato da primeira Igreja de
Piranguinho; o tio Neco Motta deu-me o retrato da segunda igreja construída em
1906, e depois, muitos outros retratos dessa época. Entrevistei inúmeras
pessoas de idade que sabiam alguma coisa sobre o início de Piranguinho e muitas
delas me surpreenderam com objetos e fotos daquela época. Em 1960, mudei-me
para São Paulo e estabeleci-me no comércio com uma mini-fábrica de rádios
receptores, mas não deixei de levar comigo as papeladas antigas para
transcrevê-las.
Em
1964 aconteceu a Revolução e com isso surgiram as greves, instabilidade
comercial e falta de segurança. Esses acontecimentos obrigaram-me transferir a
mini-fábrica de rádios para Brazópolis e, com a parceria da “Assumitel”,
instalei-a num barracão de uma antiga máquina de beneficiar café do Sr. José
Aniceto Gomes. O Sr. José Aniceto já idoso, mas lúcido, praticamente nos fazia
companhia o dia todo na fábrica de rádios, com assuntos agradáveis. Vivia de
rendas de sua fazenda e de seus imóveis urbanos em Brazópolis. Entendia de
máquinas, era um hábil torneiro mecânico e gentilmente nos prestava seus
serviços. Num determinado dia, contei-lhe que estava registrando os
acontecimentos do início de Piranguinho. Ele sorriu e me perguntou se
registrara sobre a represa do engenho de serra; respondi-lhe que registrara o
que me haviam contado. Novamente ele sorriu e convidou-me para ir a sua casa à
noite. Morava num sobrado datado de 1907, nas imediações da estação ferroviária
e logo acima de onde estava instalada a fábrica de rádios. Em sua casa, ele
mostrou-me inúmeras fotos da represa do engenho de serra, dos barracões de
alojamentos dos trabalhadores, das madeiras sendo serradas, das pilhas de
dormentes e da grande mata que circundava a represa. Disse-me que conheceu a represa
do engenho desde o seu início em 1882, que ele e seu primo Henrique Braz iam
todos os sábados e domingos passar o dia e andar de canoa na represa, que ele
fora o primeiro da região a fazer uma canoa de alumínio para ficar leve de
transportar até a represa do engenho. Falou que a represa era um lugar muito
bonito, cercado por árvores, tinha muitos peixes que eles pescavam de canoa e
ali mesmo assavam e comiam. Nos fins de semana e dias-santos muita gente de
Brazópolis, de Itajubá e das roças ia passear na represa do engenho. Iam muitas
moças bonitas, mas iam muitas que eram de “matar com pedras”. Nesse instante
ele se calou e observei que se havia emocionado e estava chorando.
Na
noite seguinte voltei a sua casa. Ele concluiu o assunto da noite anterior e
depois me disse que o seu tio Chico Braz havia comprado as terras do engenho de
serra com a concessão da produção de dormentes. Falou-me sobre a Baronesa
Leocádia, que era solteirona, bonitona, fina, elegante e muito rica. Em tom de
brincadeira ele disse que era moço de vinte e dois anos, mas se casaria com
ela. Contou que no sábado de carnaval de 1889 havia bastante gente se
divertindo na represa do engenho quando lá chegaram quatro homens da ferrovia e
anunciaram que estava para ser construída uma nova estação no Engenho de Serra.
Pediram que todos dessem sugestões para o nome dessa nova estação. Disse-me que
nesse dia riu bastante ao ouvir quantas besteiras, quantos nomes bestas foram
sugeridos, nomes de bichos e nomes que não representavam nada, e que era
preferível continuar o nome Engenho de Serra. No dia seguinte, era o domingo de
carnaval e a gentarada divertia-se na represa quando os mesmos homens da
ferrovia apareceram e deram tiros pra cima para chamar a atenção de todos.
Falaram através de campânula: “é coisa séria dar o nome para a nova estação
porque depois não poderá ser mudado. Voltamos a pedir para vocês sugerirem esse
nome naquela guarita azul ali ao lado.” Aí sim, o pessoal conversou, trocou
idéia e surgiu o nome “Piranguinho”, que em tupi significa peixe pequeno: era o
que tinha muito lá, e todo mundo aplaudiu. Disse-me que, em 1899, se associou
com o tio Chico Braz para a construção e implantação de máquinas para
beneficiar arroz e café em Piranguinho, que foi inaugurada em 1901.
Falou-me
sobre Maximiana da Costa Manso, como era, porque o seu tio Chico Braz a mandou
para Piranguinho e o que aconteceu depois. Contou-me que foi ele quem projetou
e administrou a instalação de água encanada em Piranguinho em 1909 e a
inaugurou em 1910. Que o seu tio Chico Braz colocou muitos dos seus primos em
Piranguinho: colocou o Manoel Gomes da Rocha para zelar da água, Ursulino Gomes
para cuidar do Cartório, João Gomes para zelar da limpeza, e outros mais. “Eu
acho que tio Chico Braz só cometeu um grande erro: foi em 1913 quando ele
passou as suas terras de aforamentos para serem administradas pelo Padre
Herculano daqui de Brazópolis. Tio Chico Braz morreu em 1914 e esse Padre
apossou-se de todas essas terras.” Continuou: “aqui não se chamava Brazópolis,
chamava-se São Caetano da Vargem Grande”. Já era meia noite e meia do dia 4 de
dezembro de 1964 quando me despedi do Sr. José Aniceto; abracei-o, agradeci-o
muito e me retirei. Registrei tudo da forma como que me contou. Infelizmente,
na década de 1970, um incêndio em sua casa destruiu seus pertences e todo seu
acervo histórico sobre a região. O que o Sr. José Aniceto Gomes me contou sobre
o início de Piranguinho abriu novos horizontes para os meus próprios registros.
As
minhas conversas com os mais velhos permitiram-me não apenas recolher fatos que
pude comprovar em arquivos como os da ferrovia, em Cristina, em cartórios e
livros das paróquias de Piranguinho e Brazópolis, mas também outras histórias
que, em minha saudade, imaginei serem interessantes apenas para mim. Instado
pelos integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisa Histórica, resolvi torná-los
públicos agora, para serem utilizados por quem deles se interesse. Dos casos
mais recentes, eu próprio fui testemunha ou participei. Às vezes as memórias
parecem compor um anedotário, mas se referem a situações que “de fato”
interferiram na vida e no sentimento do povo. Começo falando sobre assombrações
que assustaram muitos dos antigos moradores dessa cidade, cujos descendentes
ainda vivem e podem ou não comprovar o que narro.
Fantasmas
são espíritos de pessoas mortas que se manifestam com seus antigos aspectos aos
vivos. Comumente os fantasmas se manifestam nos locais de sua existência
anterior. Muitos, por convicção, creem e respeitam a presença e manifestações
dos fantasmas. A ideia mais aceita é de que estas estranhas aparições de
fantasmas se dão por algumas situações injustas não resolvidas quando em vida e
que deveriam ser remediadas antes de partirem para o repouso definitivo.
Assombração e fantasma são palavras de muitos significados, usadas em vários
contextos. Suas conotações expressam admiração, abalo, medo, pavor e
curiosidade que fascinam a todos. Portanto, os fantasmas e as assombrações, em
termos metafísicos, ocupam o estágio entre a vida e a vida após a morte. Assim,
os fantasmas manifestam um tipo de vida após a morte, proporcionando alívio
para a aflição humana de, um dia, deixar de existir. Para aqueles que temem a
morte, a visão de fantasmas serve de consolo já que prova a sobrevivência do
espírito e, de certa forma, deixa aberta a possibilidade de uma futura dimensão
da vida. Além de qualquer crença na sua existência sobrenatural, os fantasmas
expressam em muito a natureza humana. Não abandonam as antigas lembranças e
comportamentos, pois suas características mais importantes são as memórias. Os
fantasmas são projeções temidas, porém desejadas, por expressarem a segunda
chance que todos desejam.
Em
Piranguinho foram registradas várias ocorrências de fantasmas. Na época do
engenho de serra e do advento da ferrovia, entre 1882 e 1904, os trabalhos nos
desaterros e aterros dos leitos das linhas eram feitos manualmente por muitos
trabalhadores braçais e a terra era transportada em zorras puxadas por bois e
cavalos. Devido ao grande número de trabalhadores, ocorriam muitos acidentes,
às vezes fatais. A ferrovia mantinha uma farmácia com ambulatório nas
imediações dos trabalhos para atendimento aos acidentados menos graves. Como
não havia cemitério nessa região, os acidentados fatais eram sepultados nas
imediações da projetada linha férrea. Durante muitos anos, as pessoas diziam
ver fantasmas caminhando, em diferentes horas da noite, pela linha férrea,
entre o pontilhão onde existia o engenho de serra até a ponte de ferro sobre o
Rio Sapucaí. Em 1948, os moradores pediram ao padre de Brazópolis que
encomendasse as almas daqueles infelizes para que eles tivessem paz. O padre
atendeu aos pedidos e, seguido por uma multidão, simbolicamente transladou os
restos mortais desses fantasmas de onde foram enterrados para o cemitério
local. Desde então, afirmaram os moradores, os fantasmas desapareceram.
Ficou
famoso o caso do “Fantasma da Baronesa”, ocorrido entre os anos 1907 e 1918.
Nessa época, com frequência, entre as 16:00 e 22:00 horas, o fantasma da
“Baronesa” Leocádia de Lourenço era visto caminhando com a sua bengala pela
linha férrea próximo ao engenho de serra e ali permanecia mesmo com o tráfego
dos trens ou da presença de pessoas. Esse relato foi feito por várias pessoas
idôneas, que testemunharam o fenômeno. Entre elas se encontram: Dona Júlia
Cândida, Dona Negrinha esposa do Sr. José Pedro da Silva; Sr. Antonio Gomes e
Sr. Francisco Corrêa. Dona Leocádia de Lourenço era proprietária dessas terras
e tinha participação na produção do engenho de serra. Ela morava em sua fazenda
dos Mourões, no município de Itajubá, e mandara construir uma barca no Rio
Sapucaí para sua travessia. Com frequência vinha passar o dia no engenho de
serra para acompanhar a produção. Esse percurso entre sua fazenda e o engenho
era feito a cavalo ou de liteira. Em 1888, ela vendeu essas terras juntamente
com a concessão do engenho ao Coronel Francisco Braz Pereira Gomes e nessa
ocasião fez construir uma ampla e requintada casa para sua residência na praça
central em Itajubá. Em 1901, essa nova casa passou a ser sua residência
permanente. Sua fazenda e suas terras eram administradas por um administrador
de sua inteira confiança que lhe foi indicado pelo seu falecido pai Augusto
Caetano de Lourenço. A “Baronesa” Leocádia, que era solteira, adoeceu em 1903 e
fez o testamento deixando seus bens para serem divididos entre os negros que
eram seus escravos e que permaneceram a seu serviço após 1888, sem exceção.
Faleceu em março de 1905, em Itajubá, e não deixou família. Seu sepultamento se
deu no cemitério daquela cidade. Seu desejo não foi cumprido; o testamento foi
negado aos beneficiários e acabou sendo destruído pelo incêndio ocorrido no
Fórum de Itajubá.
Esses
fenômenos tornam-se oportunidades para investigarmos fatos passados. Alguns
deles ocorrem ainda hoje. Desde há muito tempo ocorre um fenômeno interessante
na Rua de Baixo (Gregório Motta) e na Rua da Ponte de Zinco (Paulo Carneiro).
Esse fenômeno vem sido observado por muitos desde a década de 1920 e na
atualidade já foi presenciado por muitos moradores dessas ruas. Em certas
noites, ouvem-se tropéis de cavalos sem nada ser visto, geralmente após as 22
horas, mas já foi observado por muitos entre as 19 e 23 horas. Em outubro de
1982, tive a oportunidade de observar o fenômeno pela primeira vez às 22:30
aproximadamente. Eu estava em casa, um sobrado na Rua Gregório Motta, 32, e
comigo estava meu empregado João da Silva (Pampinha). Estávamos conversando
quando ouvimos persistentes tropéis de cavalos na rua em frente. Subimos para o
andar de cima da casa e saímos à janela; nada víamos, mas continuávamos a ouvir
os tropéis. João da Silva ficou receoso e afastou-se da janela; eu permaneci a
observar. O som era semelhante ao de vários cavalos a galope que estariam a uns
quarenta metros de minha casa. Pareciam estacionados naquele lugar, mas
lentamente se deslocavam pela rua. Fiquei aguardando passarem em frente a minha
casa. Tive receio, mas pude controlá-lo; nada vi além de ouvir os sons dos
tropéis.
Já
tinha ouvido muita gente falar desse fenômeno, inclusive meu pai, meu avô
Joaquim Motta, tio Chico Almeida, Sebastião Machado e o antigo morador da Rua
de Baixo, Miguel Januário, mas nenhum deles dissera como o fenômeno se
apresentava. Nessa noite pude observá-lo e constatar a sua veracidade. Sempre
julguei os comentários como frutos da imaginação ou superstições. O curioso
desse fenômeno é que não se sabe quando ele se manifestará; acontece, quando
menos se espera. Baseando-me na experiência possível, que se pode manifestar no
tempo e no espaço através da intuição sensível e segundo as leis do
entendimento, equipei-me com câmera fotográfica, filmes de infravermelho,
gravador de som e fiquei na expectativa para fotografá-lo e gravar os sons dos
tropéis. Procurei indagar dos atuais moradores da Rua Gregório Motta, se já
tinham ouvido, à noite, algo estranho e semelhante nessa rua. Muitos disseram
que não e poucos disseram que sim inclusive o Sr. José Simplício, morador nessa
rua por mais de dez anos. Ele afirmou que por duas vezes esteve para se
levantar a fim de afugentar uns cavalos que ficavam troteando em frente a sua
casa. Perguntei-lhe porque não se levantou para ver o que era. Respondeu-me que
era quase meia-noite e estava chovendo nas duas vezes, e quando ia se levantar,
os cavalos saíram trotando rua abaixo.
Mais
algum tempo se passou quando novamente ouvi os tropéis: foi num sábado após às
22 horas. Havia quermesse da festa de Santa Isabel e tinha bastante gente na
praça. Em frente a minha casa morava o Comandante do Destacamento Policial de
Piranguinho, Sargento Venturelli. Na janela, preparei a câmera fotográfica e o
gravador de som. Os tropéis vieram se aproximando lentamente em minha direção;
pus o gravador a gravar e iniciei a bater fotos com filme de infravermelho. Os tropéis
passaram em frente e tomaram a esquerda em direção à atual Rua Paulo Carneiro.
Logo em seguida, o Sargento Venturelli saiu na janela, viu-me e perguntou se eu
sabia quem estava trotando nos cavalos aqui na frente. Respondi-lhe que no dia
seguinte comentaria com ele. O filme foi revelado e nada registrou, mas os sons
foram gravados.
Interessei-me
pelo fenômeno e passei a investigar sua origem. Sem abordar o fato, entrevistei
alguns moradores antigos de Piranguinho: Agostinho Honório, Luiz Ferreira e José
Pinto de Oliveira (Barão). Perguntei-lhes se sabiam de algum acontecimento
marcante do passado nas ruas de Baixo e na da Ponte de Zinco e que envolvesse
cavalos. O Sr. Luiz Ferreira respondeu-me que ainda era um menino de onze anos,
em 1918, quando aconteceu um acidente na Rua de Baixo no qual morreu o
cavaleiro arrastado por cavalos. Existiam, em Piranguinho, desde há muito
tempo, vários mercadores de cavalos e burros. Eles negociavam animais nos
currais que existiam nas imediações da Estação Ferroviária. Um desses
mercadores se chamava Manoel Augusto Siqueira, que morava próximo da ponte de
zinco (onde atualmente se encontra o barracão da Prefeitura) e conduzia os
animais presos uns aos outros por cabrestos de sua casa até aos currais na
Estação. De lá, para sua casa, ele os conduzia da mesma forma. Trazendo-os de
volta, numa noite de agosto de 1918, ao passar pela Rua de Baixo, os animais
estouraram e saíram a galope pela rua abaixo. Ele ficou preso no cabresto do
cavalo em que estava montado e foi arrastado e mutilado. Partes de seu corpo
foram encontradas na Rua de Baixo e na Rua da Ponte de Zinco. Os pedaços foram
recolhidos num saco e sepultados nessa mesma noite. Após ter ouvido o relato do
Sr. Luiz Ferreira, perguntei-me: haveria relação entre o fenômeno dos tropéis
de cavalos e esse acidente?
No
final de setembro de 1991, às 21:30 aproximadamente, os tropéis foram novamente
observados na Rua Gregório Motta. Nessa oportunidade, foi presenciado também
pelos soldados militares Paulino da Silva Oliveira e José Luiz Dias dos Santos.
Por saber do que se tratava, observei-o com mais naturalidade, mas os demais
ficaram atônitos e em silêncio até que tudo acabasse. Logo em seguida,
comentamos sobre o acontecido. Paulino e José Luiz Dias foram até a Rua Paulo
Carneiro na expectativa de saberem aonde esses tropéis iriam, mas nada
conseguiram.
Antes
de abandonar lembranças que beiram o sobrenatural, quero registrar aqui dois
casos muito comentados nos velhos tempos. O primeiro diz respeito à famosa
pedra da Laje. Contavam que, em 1908, no local onde atualmente se localiza o
Bairro Laje, havia um sítio de propriedade de Jorge Gonçalves da Silva, viúvo
que morava com os filhos João e Lucas. O filho mais velho, Lucas, planejou
matar o pai para se tornar dono absoluto do sítio. Para realizar seu intento,
pegou uma espingarda carregada com chumbos grossos e, de madrugada, foi
aguardar de tocaia sobre uma pedra a passagem de seu pai. Quando seu pai se
aproximava conduzindo as vacas leiteiras, para garantir a pontaria do tiro,
ajoelhou-se numa laje de pedra. No instante em que puxou o gatilho, seu joelho
direito e os dedos do pé cravaram-se na pedra. O tiro não atingiu o pai, mas o
atirador ali ficou inerte, agonizante até a morte. Desde então esse fenômeno
passou a atrair visitantes curiosos, cientistas e religiosos. O fluxo de
visitantes era tanto que os administradores do ramal ferroviário de Piranguinho
a Paraisópolis fizeram construir, em 1916, um ponto de trem próximo ao local,
que recebeu o nome de Parada Henrique Braz. Eu mesmo, quando na escola,
participei de uma excursão organizada por Dona Maria José Caridade e pude
colocar meu joelho e meu pé nas marcas famosas. A pedra da laje deixou de ser
visitada quando, em 1958, foi soterrada pela construção da rodovia MG-295.
O
segundo fato está relacionado a um misterioso profeta. No ano de 1919, veio
passar temporada em Piranguinho um homem desconhecido na região que se
apresentou como Sebastião Mello. Aqui permaneceu por mais de cinco anos e nesse
período demonstrou ser um qualificado arquiteto e pintor de telas embora não
exercesse mais essas atividades. Era pessoa culta e comunicativa, razão pela
qual conquistou a amizade e a simpatia de muitos moradores. Seu português era
clássico, sabia o francês e dominava o latim. Seus assuntos eram elucidativos e
relacionados ao social, normas de vida e princípios religiosos que partiam do
Alcorão. Seu assunto preferido era o futuro, por isso apelidaram-no de Profeta.
Por fazer severas críticas às imposições do Papa Gregório XIII e à alteração do
calendário ocorrido em 1582, acabou provocando também a antipatia dos muitos
moradores e do pároco de Brazópolis. Suas previsões foram comprovadas com o
passar dos tempos e as que mais marcaram foram: 1) no início da década de 1920
haveria escassez na agricultura devido à prolongada seca que assolaria todo o
país; 2) nessa mesma década a maioria dos fazendeiros do país faliria com as
suas lavouras; 3) aconteceria um levante revolucionário com a participação de
todos os estados e esse levante mudaria o conceito do Brasil; 4) por questões
políticas, Minas Gerais teria que se defender com luta armada; 5) antes da
metade do século, aconteceria uma grande guerra que envolveria o mundo todo.
De
suas previsões, a primeira aconteceu no ano de 1922, quando o Brasil sofreu a
maior seca até então registrada na sua história, e houve escassez na
agricultura. A segunda previsão aconteceu no ano de 1929 quando houve a crise
do café devido à quebra da Bolsa de Nova York, e muitos fazendeiros do Brasil quebraram.
A terceira aconteceu em outubro de 1930 com o movimento político-militar que
derrubou o presidente Washington Luiz, levando ao poder Getúlio Vargas, e,
radicalmente, o projeto sócio-econômico do Brasil foi modificado. A quarta
aconteceu nos meses de julho a outubro de 1932, com a revolução
constitucionalista, e Minas Gerais teve que travar luta armada para impedir a
invasão dos paulistas em seu território. A quinta previsão, por fim, aconteceu
nos anos de 1939 a 1945, com a segunda guerra mundial desencadeada na Europa,
da qual o Brasil participou. Sobre esse personagem, Sebastião Mello, ninguém
soube dizer de onde era, de onde veio e nem para onde foi. Soube-se que era uma
pessoa de relativa posse financeira, por ficar hospedado na Pensão de Dona Maria
Cândida durante todo esse tempo, pagando pontualmente sua hospedagem.
Desses
casos todos, quero destacar a insistência da “Baronesa” em continuar visitando
os lugares em que viveu. Ela me faz pensar no papel das mulheres na construção
de nossa cidade. Poderia falar de Dona Almerinda e de tantas outras, mas
recordo aqui o que meu avô falava daquela mulher forte que quase caiu no
esquecimento total. Não nos esqueçamos que, além de mulher – o que já não conta
muito para os livros de história –, era negra. Segundo o meu avô, Joaquim
Pereira Motta Sobrinho, quando, em 1901, Maximiana da Costa Manso liderou a
construção de pau-a-pique da primeira igreja católica em Piranguinho, ela
poderia tê-la construída pomposamente de tijolos e coberta com telhas, pois dispunha
do apoio do Coronel Francisco Braz Pereira Gomes para fazer o que fosse preciso
no arraial. Mas Maximiana determinou que fossem os próprios negros,
ex-escravos, que construíssem sua igreja, pois assim se sentiriam orgulhosos de
realizar uma obra para eles mesmos. Não nos esqueçamos que a imagem de São
Benedito para essa igreja foi esculpida em madeira também por um descendente de
escravo chamado Candinho Siqueira da Cruz.
Alguns
outros personagens foram responsáveis pela formação de certos costumes em nossa
cidade, pelo menos durante algum tempo. No início de 1900, mudou-se cá, vindo
de São Bento do Sapucaí, Daniel José Pedro (Danielzinho) com sua família. Ele
era fogueteiro e estabeleceu-se no comércio com uma mini-indústria de fogos de
artifícios. Diariamente, ele fazia estourar alguns de seus fogos para testá-lo
e assim os moradores contraíram a mania de soltar foguetes por quaisquer
motivos. Soltavam foguetes quando começava a construção de uma casa e soltavam
também quando a terminava. Soltavam foguetes em aniversários, nos casamentos e
nos batizados. Soltavam foguetes nas festas religiosas, nas procissões e nos
dias santos. Soltavam foguetes nas competições esportivas e soltavam também
quando Piranguinho recebia visitas ilustres: era um constante e desvairado
foguetório. Os novos moradores, que para cá se mudaram em 1922, profundamente
irritados, solicitaram intervenção policial para que se diminuísse o entusiasmo
dos fogueteiros. Para atender a solicitação foi destacado para cá, em 1923, um
Cabo da Polícia Militar, chamado Gervásio Medeiros. O cabo tentou coibir o uso
de foguetes, mas a proibição não foi acatada e aumentou ainda mais o
foguetório. Cabo Gervásio ficou no Distrito apenas uma semana e, ao partir,
foguetes estouraram por cima do trem como despedida.
A
mania de foguetes continuou até quando foi deflagrada a revolução de 1930 e o
Exército proibiu terminantemente quaisquer estouros. Danielzinho fogueteiro
morreu em 1944 e deixou a mini-indústria para o filho José Benedito da Silva
(José Daniel) e a nora Emiliana Maria da Silva. José Daniel, que se tornou
sacristão da paróquia, continuou com o ofício do pai juntamente com sua esposa
e os filhos Luiz Floriano, Lamaneres (Nésio), Isabel e Vanda da Silva. A
mini-indústria foi extinta na segunda metade da década de 1950.
As
duas Revoluções, no início dos anos 1930, misturam-se na cabeça dos mais
velhos. A proximidade de São Paulo e a presença de soldados aqui trouxeram medo
à população, mas também provocaram fatos que durante muito tempo fizeram parte
da memória do povo. O Exército havia colocado sua tropa dentro de Piranguinho e
conta-se que, um dia, ocorreu uma confusão danada. Na madrugada de 22 de
agosto, alguém fez uma brincadeira de mau gosto para assustar os soldados. Uma
bateria de bombas estourou no pontilhão da estrada de ferro, próximo ao atual
Marco Zero. Ao investigar o fato, um grupo de soldados pensou que a tropa
paulista estava atacando e disparou contra outro grupo. Estava escuro e, no
tiroteio, três soldados da mesma tropa foram mortos. Somente muito tempo depois
se ouviu dizer que fora o Ernesto da Maria Caetana quem havia estourado as
bombas no pontilhão.
Uma
outra história aparece no JORNAL DE PIRANGUINHO (Órgão Oficial da Intendência
Municipal) com a data de 1º de Maio de 1963 – número 9, impresso na última
página do Jornal BRAZOPOLIS (Órgão Oficial dos Poderes Municipais) de 12 de
maio de 1963, número 2.004. Alguém recorda ali: “Voltou-nos à memória, então, o
dia histórico em que Piranguinho foi palco de um combate militar. Foi em 1930,
num dia do outubro fatídico. Em nossa cidade de Piranguinho havia alguns
voluntários armados de revólveres e de espingardas de caça. Foi quando surgiu
do outro lado da ponte da Rede, um trem militar, conduzindo soldados do
Exército. Dali há (sic) pouco retumbava um tiroteio medonho. O Sr. Garrido,
construtor da Igreja, estava trabalhando pacificamente, trepado no último
andaime. Ao ouvir assoviar, sinistramente, as primeiras balas, não teve tempo
de procurar um refúgio melhor, deitou-se aí mesmo no andaime, protegido pela
grossura dos muros e esperou acabar o tiroteio. Não durou muito. No final, a
Igreja tinha tomado algumas balas que riscaram seus tijolos, sem causar dano de
monta.”
A
ferrovia e seus trens também deixaram histórias. Em 1902, ocorreu o
descarrilamento da locomotiva de número 98 no Km 105, nas imediações da fazenda
do Capote. O aterro do leito da linha férrea cedeu e a locomotiva caiu numa
lagoa próxima. Todos os esforços das pessoas que estavam por perto e dos
trabalhadores da fazenda para evitar que ela afundasse foram inúteis; o fundo
da lagoa era de argila e areia movediça. Os técnicos da ferrovia tentaram
recuperá-la, mas decidiram abandona-la e lá ela permanece até então. Segundo os
depoimentos das pessoas que colaboraram fornecendo laços e cabrestos para
amarrar a locomotiva à espera do socorro da Ferrovia, esta lagoa encontra-se na
direção reta da casa da fazenda do Capote ao Rio Sapucaí. Depois desse
incidente, os encarregados da ferrovia alteraram o curso da linha férrea
instalando-a próximo à Capela do Capote.
Outro
caso de descarrilamento proporcionou uma boa história de suspense e mistério,
um enredo a ser apresentado em quatro atos. Conforme relatos dos antigos
moradores, na noite de 02 de agosto de 1902, nas imediações do quilômetro 101
da ferrovia entre Piranguinho e Pimenteiras, um trem que transportava valores
da Companhia Inglesa Seleers, empreiteira da construção da ferrovia nesse
trecho do Sul de Minas, descarrilou. Os valores destinavam-se aos pagamentos de
seus empregados e das desapropriações das terras no curso da linha férrea.
Nessa noite chovia torrencialmente e, por força das circunstâncias, o trem aí
teve que pernoitar. Sem que os encarregados do transporte percebessem, esses
valores que estavam acondicionados em quatro malas de couro foram furtados. O
Comando Policial Militar de Três Corações foi acionado e intensas buscas foram
realizadas nos leitos dos rios, lagoas, matas e nada foi encontrado. Permaneceu
na região por mais de vinte dias, vistoriou todas as casas, tulhas, cisternas,
fossas, quintais, plantações, e interrogou a população. O registro policial
cita que os valores contidos nessas malas eram em libras esterlinas e pesavam
aproximadamente oitenta e seis quilos. Pelo peso e o formato das malas seria
necessário quatro pessoas no mínimo para transportá-las. A ocorrência foi
arquivada.
Anos
depois, em meados de 1942, muitos moradores das imediações do quilometro 101
afirmaram ter encontrado um homem desconhecido na região, alto, loiro,
aparentando sessenta anos, de pouca prosa e de palavreado estrangeiro. Outros
tantos moradores afirmavam terem visto esse mesmo homem rondando as Santas
Cruzes existentes nas imediações. As pessoas que conversaram com o desconhecido
relataram que ele lhes mostrara algumas moedas parecidas ser de ouro e lhes
perguntara se conheciam dessas moedas. Os relatos causaram muitos comentários
associando esse desconhecido ao furto do trem no quilômetro 101. Depois desses
comentários, o desconhecido não mais foi visto na região.
No
final de setembro de 1945, Oscar Bibiano da Cruz, morador de Piranguinho,
casado, pedreiro e conhecido na região, afirmou ter sido contratado por um
senhor idoso, loiro e estrangeiro para lhe prestar um serviço extra após a hora
de seu trabalho. Na noitinha de 29 de setembro, ele acompanhou esse senhor para
lhe prestar o tal serviço que ele nunca especificou. Ao chegarem ao lugar
determinado, apercebeu-se de que se tratava de algo que estava enterrado. Já
estava escuro e ele só dispunha no momento de um lápis e um pedaço de papel de
saco de cimento; fez então o esboço do local e retornou para sua casa. No dia
seguinte, à noite, no armazém de Maurício Gomes da Rocha, ele comentou o fato
com amigos e lhes mostrou o esboço que havia feito. O fato espalhou-se como
sendo o mapa do esconderijo dos valores roubados do trem no quilômetro 101. No
dia primeiro de outubro aconteceriam as eleições para Presidente da República
entre os candidatos Eurico Gaspar Dutra e Brigadeiro Eduardo Gomes. Quando
Oscar Bibiano, eleitor em Brazópolis, viajou para lá, sua casa foi arrombada e
o esboço que fizera do suposto escondido, desapareceu. A ocorrência foi
registrada na Delegacia de Polícia, na presença do Subdelegado Sebastião
Pereira Machado. Aconteceu que Oscar Bibiano teve morte súbita e suspeita,
diagnosticada como causada por intoxicação alimentar, logo no início de
outubro. Seis meses depois, o esboço reapareceu em mãos de alguém e foi
apreendido pelo então Subdelegado de Polícia João Carvalho de Castro (João
Soldado). Acabou sendo arquivado juntamente com a ocorrência do arrombamento da
casa do falecido. Nessa ocasião, os moradores de Piranguinho iam até a
Delegacia para ver e conhecer o tão comentado esboço do esconderijo.
Em
1958, eu, João Aparício e Harley de Almeida nos propusemos decifrar o tal
esboço. Consideramos que ele fora feito à noite, com pouca luminosidade e quem
o esboçara era pedreiro e dispunha de um pedaço de papel de saco de cimento e
lápis do tipo carpinteiro. Certamente não necessitaria de maiores detalhes por
ser ele mesmo que iria desenterrar o que estava ali escondido. Partindo-se
dessa hipótese, admitimos que um dos desenhos desse esboço fosse de uma Santa
Cruz no alto de uma estrada. O outro desenho com o escrito “oliu” certamente
seria uma árvore de Óleo Pardo comum nessa região. O desenho com o escrito
“Per” poderia ser uma árvore Pereira. O desenho com uma seta apontando para um
círculo ligado a um outro círculo menor, provavelmente seria uma pedra maior
próxima a uma outra pedra menor demarcando o local do esconderijo. Na época
desse acontecimento, existiam várias Santas Cruzes nas imediações de
Piranguinho. A mais próxima delas localizava-se no início da estrada para a
fazenda dos Neves; uma outra encontrava-se no fim da reta da estrada de ferro,
próxima do sítio do Sr. José Pedro; outra localizava-se na estrada para a
fazenda dos Rennós; outra na estrada para o Capote; outra no início da estrada
para Itajubá e outras duas se encontravam na estrada para o Mato Dentro.
Consideramos
que estas Santas Cruzes, construídas desde antes de 1900, sempre nas margens
das estradas e nos pontos mais altos para serem avistadas de todos os lados,
eram locais apropriados para se esconder o “tesouro”. Seus terrenos, medindo
quatro braças de frente por sete braças de fundo, cercados com arame farpado,
eram considerados sagrados e neles se sepultavam os defuntos das fazendas
próximas. Apesar de nossas brilhantes deduções e de intrincados esforços, não
conseguimos identificar o local. Os valores roubados nunca foram encontrados,
mas não descarto a possibilidade de continuarem escondidos nalgum lugar nessa
região.
Pensando
no passado, não resisto à tentação de fazer uma comparação com o presente. A
atual população piranguinhense desfruta dos avanços tecnológicos conquistados
nos últimos trinta anos, mas muitos já se esqueceram como era difícil a vida
nos velhos tempos. De 1910 a meados da década de setenta, havia um único
telefone em Piranguinho. Ele era público, acionado por manivela e dependia de
telefonista para fazer as ligações. A central telefônica ficava em Itajubá e de
lá partia uma única linha que interligava Piranguinho, São José do Alegre e
Pedralva, de forma que, quando uma dessas localidades estava utilizando o
telefone, as demais tinham que aguardar. Uma ligação telefônica de Piranguinho
para outra localidade próxima demorava de uma a duas horas. Ligações
telefônicas para lugares distantes eram mais demoradas e apresentavam ruídos
interferentes que dificultavam as comunicações.
A
energia elétrica, que abastecia a localidade desde 1910 até meados da década de
sessenta, era fornecida pela Companhia Sul Mineira de Eletricidade de Itajubá,
e a usina geradora era a de São Bernardo, nas imediações de Piranguçu. Havia um
único e insuficiente transformador distribuidor de energia elétrica para o
abastecimento de toda Piranguinho, de forma que, durante o dia, quando se
ligavam os motores das máquinas beneficiadoras de arroz, o abastecimento
elétrico residencial era insuficiente para fazer funcionar um rádio-receptor.
Aos domingos e feriados, o fornecimento elétrico era interrompido entre 6 e 13
horas, a fim de racionar a água da represa que acionava a usina geradora.
Nenhuma residência possuía geladeira ou chuveiro elétrico. Os fogões eram à
lenha e muitos deles eram adaptados com serpentinas para aquecimento central de
água, a fim de abastecer chuveiros e banheiros. O abastecimento de água
encanada existia desde 1910. Era municipal e tornou-se insuficiente a partir da
década de cinquenta, em virtude do crescimento populacional e do aumento de
consumo. Para contornar a escassez de água, a maioria das casas possuía
cisternas.
Na
década de cinqüenta, já em minha juventude, recordo os entretenimentos noturnos
da moçada: ver os trens de passageiros na estação, reunir-se no jardim da praça
para conversar e ouvir músicas pelo alto-falante do cinema, ouvir rádio-novela
ou ler livros. Havia um cine-teatro, onde eram exibidos filmes nas
quartas-feiras, sábados e domingos, se não faltasse energia elétrica. Muitos
jovens trabalhavam durante o dia e outros tantos cursavam o ginasial em Itajubá
e em Brazópolis. Eles iam para os estudos nos trens da madrugada e voltavam nos
trens da tarde ou da noite.
O
primeiro receptor de televisão foi implantado no final da década. Era novidade
e muita gente vinha conhecê-lo. Na época, só existiam duas emissoras de
televisão no Brasil: TV Tupi de São Paulo e TV Rio do Rio de Janeiro. As
transmissões eram de meio período por dia e em preto e branco. A TV Tupi era a
única que alcançava Piranguinho e, para captá-la, foi necessária a implantação
de antenas especiais no pico dos Dias e antena rômbica no receptor. Mesmo
assim, a recepção era instável em dias normais; quando chovia, ventava ou
relampejava, o sistema apresentava pane e o sinal era interrompido.
O
assunto predominante da rapaziada era o presidente ambicioso que governava o
Brasil, cujo slogan era realizar em cinco anos o que não foi realizado em 50. O
seu governo estava realizando obras faraônicas, mas também estava contraindo
dívidas faraônicas; até mesmo havia lançado mão dos recursos do INPS. Numa
época em que o Brasil era carente de estrutura básica para seu crescimento
industrial, carente de energia elétrica, de meios de comunicação, de educação e
de assistência à saúde, o governo, sem abalizar as conseqüências, estava
construindo Brasília num lugar onde não havia estrada, água, nem energia
elétrica. Os materiais eram transportados por aviões sem considerar os altos
custos; ainda mais, ele havia abandonado as necessárias conservações do sistema
ferroviário do país. Seu governo durou até 31 de janeiro de 1961 e os que o
sucederam enfrentaram altas dívidas, inflação galopante e o povo descontente.
Nessa
época eu já conversava muito com os mais velhos e recolhia a papelada velha que
hoje compõe o meu arquivo pessoal. Sem muita formação histórica, sentia que uma
cidade é formada por seu povo e suas memórias. Por isso, encerro estas
lembranças com um pouco de nostalgia, na esperança de que o conhecimento do
passado ainda seja útil para a formação das pessoas.
Ai
que saudades das festas de outrora em Piranguinho! Havia festas de São
Sebastião, de Nossa Senhora Aparecida e de Santa Isabel. Havia as barracas da
festa e cada uma delas tinha seu nome e sua cor. As moças e rapazes que
trabalhavam nessas barracas eram uniformizados com suas cores. Havia concursos
de bonecas e as candidatas eram selecionadas entre as meninas mais
comunicativas e engraçadinhas de Piranguinho. A Igreja era decorada com flores
e outras tantas ornamentações pelas moças e senhoras da Liga Católica: Inácia
Pedroso, Nicota Carneiro, Fia Moreira, Isabel Colorado Motta, Júlia Vilas Boas,
Nicota Gomes, Maria José Gomes, Nuria de Almeida, Zizica de Almeida, Ciloca
Machado, Terezinha Antunes e Samaritana Antunes.
Essas
festas eram realizadas nos primeiros domingos do mês e nove dias de
antecedência havia novenas a noite com rezas de terços pelo “Sô Danielzinho”.
Durante a novena, as barracas da festa, montadas ao lado da Igreja, funcionavam
e a praça ficava animada com muita gente. Nós, garotada, brincávamos no jardim
e balançávamos nas barquinhas dos parques de diversões que aqui se instalavam
nessas ocasiões. No domingo da festa, a gente já acordava no raiar do dia com
som da banda de música fazendo alvorada. A gente levantava cedinho, vestia
roupa nova, calçava sapatos também novinhos e saía para ver a banda de música e
as barraquinhas que se instalavam na praça. Encontrava os colegas de escola e,
juntos, visitávamos todas as barraquinhas. Iniciávamos pela que vendia
brinquedos, ioiôs, bilboquês, joguinhos, quebra-cabeças e relógios-fantasias de
pulso. Era grande a variedade de produtos que essas barraquinhas vendiam, nelas
se encontravam artigos religiosos, material de costura, adornos femininos,
perfumes, bijuterias, chapéus, meias, relógios, ferramentas de carpintarias e
agrícolas. Havia barraquinhas de pastéis feitos na hora, de jogos de roletas,
de jogos de dados, de fura-fura e de sorteios.
A
cerimônia religiosa iniciava às 8 horas com celebração da Missa pelo Padre
Joaquim de Oliveira Noronha (Quinzinho). Às 10 horas iniciava-se o leilão no
coreto todo enfeitado com bandeirolas coloridas e cartuchos com quitandinhas e
doces. Os leiloeiros eram os senhores Alípio da Silva e Benedito da Silva (Sô
Garcia). Os assados de leitoas e frangos eram os primeiros a serem leiloados;
depois eram as roscas, pães folhados com chocolate, cartuchos e prendas. O
desenrolar do leilão era abrilhantado pelo som da banda de música. Os leilões
de gado e cabritos realizavam-se às 14 horas nos mangueiros cedidos por Joaquim
Pereira Motta Sobrinho e Sebastião Pereira Machado. Às 15:30 horas realizava-se
a procissão dos fiéis conduzindo os andores pelas ruas centrais; o andor de São
Benedito ia na frente da procissão, em seguida era o de Menino Jesus, por último
era o do santo festeiro e no fim da procissão ia a banda de música. O que nós,
garotada, gostávamos mesmo era de acompanhar o “Sô” Danielzinho bem na frente
da procissão, soltando os seus foguetes de vara. O encerramento da festa se
dava com queima de fogos pirotécnicos e a banda de música tocando o dobrado
“Até outra vez”.
Pensando
bem, é difícil acreditar que tudo mudou e que estejamos vivos até hoje! Nos
últimos anos houve uma desmedida explosão de inovações, e tendências… As
mercadorias dos armazéns e os remédios não tinham lacres especiais de segurança
e nem data de validade, e ninguém morreu por isso! A gente bebia água de chuva,
de poço, da torneira e tinha boa saúde! Nossos intestinos nunca se encheram de
bichos estranhos… No máximo, a gente tomava purgante contra vermes e
fortificava com óleo de fígado de bacalhau! Se a gente gripasse, se curava com
chás de alho e alguns comprimidos… Os vírus não eram tão contaminadores e
resistentes! A gente construía os brinquedos e se divertia com eles!
Na
escola, a gente tinha que saber a tabuada de cor e salteada, resolver as quatro
operações fundamentais sem calculadora! As professoras eram dedicadas e
exigentes, não davam moleza… Castigavam se fosse necessário e não eram
recriminadas por isso! A gente saía de casa e brincava o dia todo, nossos pais
nem sempre sabiam onde estávamos, mas tinham a certeza de que não estávamos
usando drogas!
A
gente comia muitas frutas do mato, brincava na poeira e nas palhas do arroz,
tomava chuva e pisava na lama… Mas ninguém ficava doente e nem contraía
alergia… Nem se falava em alergia! A gente dividia uma garrafa de guaraná entre
dois ou três colegas; bebíamos no próprio bico e sem gelo… Ninguém se
contaminava com isso! A gente nadava no rio e bebia de sua água… Eles não eram
poluídos pelos esgotos… Nem se conhecia micose! Nossas iniciativas eram
“nossas”, mas as conseqüências também, e ninguém se escondia atrás do outro!
Nossos pais nos colocavam de castigo e nos batiam se desobedecêssemos às
regras… Mas nenhum deles era preso por isso! A gente sabia e obedecia; quando
nossos pais diziam “Não” era “Não” mesmo!
A
gente ganhava brinquedos no Natal e no aniversário, e não todas as vezes que
queríamos… Nossos pais nos davam presentes por amor e não por dever! Não
existia gravador de fitas, não tinha televisão, nem videocassete, nem
computador, nem Internet… Tínhamos bons amigos e bons livros! A gente ia à casa
dos amigos, entrava e conversava… sozinhos num mundo sem medo e sem maldade! A
gente levantava cedinho para ver e ouvir a passarada cantar na praça… Não
existia o mata-mato que envenena as sementeiras que a passarinhada come!
A
gente ficava nas beiras das matinhas para ver os coelhos do mato transitarem e
brincarem… Não envenenavam as matinhas e nem as queimavam! Aos 17 e 19 anos, a
gente procurava o primeiro contato sexual em uma zona de meretrício, e sem
camisinha… Ninguém se contaminava com doenças sexuais… AIDS não existia! A
gente namorava, mas era somente namorar! A gente ia a casamentos, mas com a
certeza que o primeiro filho daquele casal só nasceria depois de nove meses! A
mãe da gente era “Mãe” mesmo… Não agredia a gente no seu útero com ultra-som
para saber o nosso sexo!
A
gente veio de uma geração que produziu inventores, artistas, amantes da música,
das artes e da cultura. Tínhamos liberdade, sucesso, algumas vezes problemas e
desilusões, mas tínhamos responsabilidade e sabíamos resolver tudo isso…
sozinhos. Se você também é um destes sobreviventes… Parabéns! Você curtiu os
anos mais felizes da sua vida.
4 comentários:
Muito bonito o seu trabalho,a história é muito importante pra todos.O sr. escreve muito bem e tomara que em Piranguinho o sr. seja muito querido e respeitado.Adorei seus relatos.
MUITO INTERESSANTE.
Ótimo, voltei ao passado.Parabéns.
"A mãe da gente era “Mãe” mesmo… Não agredia a gente no seu útero com ultra-som para saber o nosso sexo!"
E outras coisa mais.
Hoje as crianças cheiram Creche.
Tem 500 mil caracteres e chama memória curta... imagina a longa kkkkkkkkkkkkkkkkk
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