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3 de setembro de 2010

DEVOÇÃO – Renato Lôbo

Um sol vermelho batia de frente e deslizava lá longe, pra ser guardado na serra. O final de tarde era sempre melancólico. Quatro árvores centenárias marcavam o exato lugar em que o sol deveria se por todo dia. E ele cumpria à risca. Escondia-se atrás delas – menino obedien-te – dando-lhes o orgulho de dominar a cidade, antes da noite, guardiãs de sonhos nem bem ainda sonhados nem bem ainda cumpridos.

Era a hora de recolher as últimas coisas. E tia Cotinha esvaziava o quintal das gaiolas dos canários, dos aventais, dos chinelos, dos trens da cozinha e da roupa do varal. Ficavam ain-da, no sereno da noite, a mangueira, o pé de laranja-comum e as couves.
-Sebastiana, recolhe a roupa!
Dessa vez, Sebastiana cumpria o mandato sem desaforar como sempre fazia, há mais de 30 anos. Era a hora mais sagrada do dia: ao sino batia-se a Ave-Maria. Três pancadas curtas, depois mais três, mais três, e mais nove, cadenciadas. Era a hora do recolher-se.

Tia Cotinha acendia uma vela, persignava-se, rezava, bem baixinho, os olhinhos azuis fechados, e dizia segredos muitos, a serem falados e ouvidos só entre ela e a Santa. Coisa que só mulher entende. Além do mais ela era Procuradora da Virgem. Uma fé, uma esperança, uma força de crer, uma intimidade de quem sabia o número do celular do Céu.
-O que a senhora pede tanto? - perguntava Sebastiana.
-Nada, minha filha. Só agradeço. Tenho tudo.
-Mas nem uma coisinha?
-Nem uma coisinha! Tenho tudo.

A tarde caía. Enrolada no xale, tia Cotinha apertava o terço contra o peito. Se não para rezá-lo, para tê-lo ali, consigo, companheiro fiel de tantas angústias, na prontidão em tantas ago-nias. Olhou Sebastiana com o carinho da convivência de três décadas e lhe contou a mais preciosa sabedoria, iguaria selecionada só para aquele cair da tarde.
-Aprendi que os melhores presentes de Deus são as preces não atendidas.

Preciso dizer que Sebastiana não entendeu nada? Não, decerto. Mas ela entendeu. Enten-deu que da vez que havia pedido desesperadamente a Santo Antonio por um casamento, quando o Zé da Ceição não quis nada de sério com ela, ficou desarvorada, despenteada, desarrumada, achando que o mundo havia acabado. Mas quando ele morreu da pinga, teve tempo de entender os desígnios do Alto e compreendeu que o sujeito não servia pra ela e que o Santo lhe tinha dado muito mais do ela havia pedido, exatamente por lhe ter negado a graça do engraçamento do Zé da Ceição. Vontade até que havia. O que não havia era juízo naquela cabeça.

-A senhora tá certa. Muito certa! Deus atende até quando não atende.

E calou-se naquela hora, grave e solene, tão solene e grave quanto o momento, por demais agradecida ao Santo por lhe ter levado o pedido a bom termo e a bom tempo também levado o Zé, que não nascera para ser dela. Melhor assim! Melhor assim!

Tia Cotinha embrulhada no xale das rezas, fechou os pequenos olhos azuis e agradeceu com força não ter perdido a Sebastiana, ainda mais, para um sujeito que não estava à altura dela. Iam ficar as duas ali, decerto, muito tempo ainda, no casarão da esquina, com as jane-las de frente para espiar a praça e as janelas do fundo para guardar a mata. Era de lá que todo dia o sol nascia. E quando se deitasse, do outro lado, precisava haver valido a pena, nem que fosse, só o percurso do dia. E já tava era bom!

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