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20 de setembro de 2010

O SALOMÃO DAS GERAIS – Renato Lôbo

Reza a tradição talmúdica que o sábio Salomão escreveu três livros. O Cântico dos Cânticos, no furor da mocidade: “Beija-me com os beijos da tua boca”. Os Provérbios, na ilusão da meia-idade: “Quero ser o mais sábio dos homens”. E o Eclesiastes, já na desilusão da velhice: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”
Pois é, quando tio Amarildo era saudado como o Salomão das Gerais, gracejava:
- Só se for O da velhice!
Na verdade, o que ele achava do mundo, não contava pra ninguém. “Isso daqui é uma grande bobagem!” – declarava, só amiúde e só para os íntimos.
Peraí, gente.
Se deixei a impressão de que ele fosse um pessimista de carteirinha e coisa e tal, foi um crime! Tio Amarildo era filósofo. Esquisito, mas filósofo. Filósofo, mas casado com Tia Ordália (isso era o mais esquisito), que era o avesso do avesso dele e de qualquer filosofia.
- O Amarildo fica lá, filosofando co’os empregados dele... Eu quero mais é bater perna! – dizia.
Quando ele completou os 50, teve uma baita festa: missa solene com direito a um bando de coroinhas arrastando batina e muita campainha e muito incenso e uma cascata de flor que escorregava do pé do Padroeiro até não sei onde. Ao final, muita arenga e homenagem. Recebeu até diploma, não me lembro mais do quê!
Discursaram na ocasião: D. Georgina, que Deus a tenha, o Zequinha, que Deus o tenha, o Noé, que Deus o tenha, o Octacílio, que Deus o tenha, e o Zé, que Deus o tenha! Nossa! Agora que eu vi...
Agradeceu, o homenageado, vivamente emocionado, tremendo no canto da boca e assuando o nariz. Sempre assuava o nariz quando ficava nervoso. Lembrou que foi um menino pobre e que aprendeu a ler na fresta da venda do Néco. Contou que a luz, do lado de dentro, vazava por um vão de parede e ele, do lado de fora, de noite, seguia o rabo de luz, letra por letra, num toco de lápis, sem borracha. Terminou dizendo que, na verdade, nisso tudo recebido, não havia um cisco de merecimento seu e que a vida lhe fora boa madrinha, só isso.
Em casa, batiam-lhe nos ombros, saudavam-no. E ele repetia que tudo não passava de “prosopopéia para acalentar bovino” (sic) conversa pra boi dormir. Ordéte, cunhada, e irmã de tia Ordália, embevecida, num godê guarda-chuva rosa-choque, exclamava:
- Geeente! Como o Marildo fala bonito! – Só não entendia nada. Ainda bem!
Tio Amarildo, que – relembro a todos – não era tio, tinha resposta na ponta da língua pra tudo. Quando lhe propunham sociedade, perguntava: Que vantagem a Maria leva? Se lhe apontavam alguma dificuldade, respondia: Isso não é pior que extrair siso incluso! E se lhe contavam alguma façanha onde rolou dinheiro fácil, disparava rápido: Debaixo desse angu tem couve!
Nunca fumou. Só quando filosofava, mesmo assim só cigarro de palha, e mesmo assim depois de horas montando o cigarro, desde o corte e aparelhamento da palha, a picagem e moagem do fumo na mão, o enrolar destro, o passar selante da língua pelo cigarro pronto. Findo o ritual, quando a gente pensava que ia acender, solenemente, guardava no bolso. Era só pretexto pra matutar.
Filosofava e dizia-se aborrecido com o mundo. (Isso, lá pelos idos de antanho! Calcule, se fosse hoje!) E mais: achava quase tudo burro, efêmero ou, quando não, cruel. Faltava-lhe sempre algo que ele não alcançava, ou porque a perna não fosse ágil ou porque o senso lhe viesse manco. Faltava-lhe o bem total – dizia, e completava: Coisa que realmente não existe por aqui, não existe.
Desde criança, nunca deixou de ser o protótipo do homem civilizado. Raramente, lhe escapou um dia que não fizesse a boa ação de tomar banho. Mas era tristonho, e era assim desde que se conhecia por gente. Quando, assoviava, avisava que havia deixado o cérebro descansando em cima do travesseiro e saído de por aí, descerebrado, só a fim de contemplar a inconsistência humana. Apesar disso, fazia questão de ressaltar que já havia escrito o epitáfio e deixado pronto: “AQUI, SIM: FAZER O QUÊ? MAS SOB PROTESTO!”
Tia Ordália lhe queria bem e, se não fosse pedir muito, até feliz.
- Homem... que da vida não se leva nada! Não vê que a gente é feliz?
E ele, salomonicamente, respondia:
- Dália, Dália... Felicidade não é objetivo, é subproduto; é árvore de dourados pomos, que sempre pomos onde não estamos, e sempre estamos onde não a pomos.
Na verdade, não era triste. Só era filósofo, de horas vagas. Mais do que ninguém, coube a ele a manha de se aperceber que viver é como escolher sapato. Ninguém pode escolher por nós. E não é fácil encontrar. Mas quando a gente encontra, já sabe, na hora, que é aquele, e pronto. E não há Neuza que empurre outro e faça trocar.
Foi-se, rápido, tio Amarildo. Deixou epitáfio e saudades. Fez parte de um mundo bom – que ainda era bom – e onde, se não havia tanto amor, também não havia tanta maldade.
Assim sendo, solicito ao Samuel Miranda a fineza de avisar aos ouvintes da Rádio Difusora Brazópolis, ZYZ 26, “a voz amiga do Sul de Minas”, que isto daqui é só ficção. Qualquer semelhança com a realidade não passou de mera coincidência.

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