6 ANOS LEVANDO AS NOTÍCIAS DA TERRINHA QUERIDA

AQUI, FÁTIMA NORONHA TRAZ NOTÍCIAS DE SUA PEQUENA BRAZÓPOLIS, CIDADE DO SUL DE MINAS GERAIS.

E-MAIL DE CONTATO: fatinoronha@gmail.com

16 de setembro de 2010

RAINHA REGINA – Renato Lôbo

Do vão da janela da copa de casa avista-se a curva do Benito, na saída pra Luminosa, de casas grandes à direita e um espesso bambuzal à esquerda, feito um espelho verde, e ao fundo o monte São Gabriel, já azul de tão longe, e mais azul ainda o céu, aonde a vista vai e morre. Às nove da manhã, da chuva da noite ainda molhado o caminho, a poeira apagada assentava o pensamento e acalmava o coração. A estrada de terra batida e molhada, sem lama, não maculava seus delicados pés calçados de sandália. Da janela do fundo da copa de casa, quando o relógio antigo batia nove badaladas, já era possível, ao longe, avistá-la.
Não havia binóculo. Não era preciso. O andar era o mesmo, a sombrinha era a mesma, a marmita embrulhada no mais alvejado branco pano era a mesma, os cães de guarda eram os mesmos, o clarão do dia era o mesmo... E a vontade de voltar pra lá, agora mesmo, ainda é a mesma.
Pequena, franzina, e o cabelo embranquecido, o rosto fino, o nariz esculpido, a boca serena, o passo pequeno, tão firme, tão firme, as mãos calejadas, e as roupas cuidadas, sempre cuidadas, mas jamais à altura de cobrir do lado de fora tudo o que dentro se escondia e guardava. Rainha Regina, sem coroa, sem título, sem manto, sem reino. E assim mesmo, rainha. Alguém haverá pra me desdizer?
Depois que alcançava o ponto à chegada, ladrilhado de paralelepípedos, tirava a sandália, calçava o sapato, e os passos eram os mesmos: curtos, firmes, decididos. Com minha avó no alpendre, ali se iam 15 minutos. Na chegada. Outros 15, na volta. Todo dia. 210 minutos por semana. 6.300 por mês. 75.000 por ano. Em 10 anos, 756.000 minutos de conversa. De 15 em 15 também se vai longe!
Sobre o que conversavam?
Da chuva, do sol, da plantação, das saúdes, das estradas, das estrelas da noite, do santo do dia, das miudezas da vida, isso, das miudezas da vida. Até nisso, ela era rainha. Sabia compreender a contingência dos menores, sabia avaliar até onde podia ir, sabia do que conversar.
Nunca, em nenhuma ocasião e por razão nenhuma, ouvi a cor da sua voz anunciar a competência que tinha, da formação em Campinas, do que dela emanava de cultura musical, do que havia feito e do muito a fazer, dos dedos mágicos no piano, da bandinha, da fanfarra... Nunca! Como nunca dela saiu queixa alguma. Nunca!
Podia? Vixi! Mas não fez. Até nisso era rainha.
Juntava sombrinha, marmita, bolsa, sandálias e os inseparáveis e fiéis cães, subia ao restante, chegava à praça, dobrava no Tronco, atravessava a rua e alcançava a casa de alpendre vistoso com samambaias dependuradas.
Mas não durava muito. Nem o tempo de um terço rezado. Voltava logo. E aí vinham as ruas de volta, o alpendre da curva, os 15 minutos, a estrada, a estrada, a estrada e, enfim, a chegada. O sol não era o mesmo da vinda. Talvez, chovesse. A poeira do chão, úmida da noite, na manhãzinha, já se havia erguido, desafiadora. A chuva também desafiava. O peso nos braços desafiava, a distância desafiava. E, sabe a vida? Também desafiava.
Mas tudo isso sucumbia aos maravilhosos olhos azuis. Todo cansaço, toda frustração, todo sentimento preso, e toda desilusão, aquilo que não foi alcançado, o que ficou pro amanhã e nunca chegou, aquilo que o passado cobra do presente, e o presente não tem a quem cobrar... Tudo o que tão bem qualifica a ineficiência da condição humana e desqualifica, quantas vezes, nosso rumo, nosso prumo e a vontade de ficar. Aqueles olhos azuis desmentiam toda dureza e acidez da vida. Porque, apesar de tudo, eles haviam decidido acreditar. E a vida, também, apesar de tudo, acreditou neles. Abençoada vida! Inesquecíveis olhos azuis!
Peço dia após dia para que de todos os seus passos nasçam flores, e pelas beiras das estradas por onde passou as giestas floresçam de amarelo tudo o que olhar alcançar, e que, ao seu passar, o vento toque de leve os galhos das árvores como se fossem cordas de harpa, e que ela, quando adormeça, toda noite, tenha sobre si, de coberta, o mais belo céu, com mais estrelas que fardão de brigadeiro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por dar a sua opinião.
Elogie, critique, mas faça isso com educação.
- Comentário com palavras de baixo calão será excluído.