6 ANOS LEVANDO AS NOTÍCIAS DA TERRINHA QUERIDA

AQUI, FÁTIMA NORONHA TRAZ NOTÍCIAS DE SUA PEQUENA BRAZÓPOLIS, CIDADE DO SUL DE MINAS GERAIS.

E-MAIL DE CONTATO: fatinoronha@gmail.com

14 de setembro de 2010

MIRACULOSO DESTINO – Renato Lôbo

O Pinheiro era um sujeito gordo de umbigo fundo. Parecia um sofá com botão no meio. Fazia compra com camiseta de time de futebol e sandália barata. Se faltasse a sandália, era bem capaz de ir descalço, sem a menor cerimônia. Se faltasse a camiseta, ia de regata, com a barriga desafiando a lei da gravidade e um tufo de pêlos escandalosos colorindo o ombro da namorada. Pois é, tinha namorada! E, pasmem, casou-se! E pasmem, mais um pouco, saía com todo rabo de saia que aparecesse. “Se tivesse mais de 35 quilos e o coração batesse, ele não recusava”, assim dizia.

Já a Maria Machado, moça das antigas, contrita e temente a Deus, ficava em casa, rezava, se acomodava. É o que eu sempre digo: Para cada bom Pinheiro existe sempre um melhor Machado.

Um dia, acharam por bem deslanchar uma viagem a Aparecida do Norte, para benzer o carro novo. Antes, porém, para estrear bem o carro, o Pinheiro deu umas voltas com uma periguete, antiga conhecida, justo, na véspera da viagem. Estava certo que fazia bem, pensou o salafrário. O bife de ontem é o picadinho de hoje e o croquete de amanhã. O pecado de ontem se paga com a benfeitoria de hoje e se apaga na confissão de amanhã. E ponto. E tudo fica como dantes no quartel de Abrantes. Nada que uma água benta não lave!

Saiu. Andejou. Voltou. Dormiu. Levantou cedo. E viajou, aliás, viajaram: ele, a esposa e a sogra, felizes, felizes, felizes. Ele e a esposa no branco da frente, a sogra no banco de trás. Roupa nova, sapato novo, tudo novo. O dia pedia. E prometia.

Sapato novo – sabe como é – incomoda. O sapato da sogra feriu a joanete e, lá pelo meio da viagem, ela viu por bem descansar os pés e soltar a criançada: dez dedos em liberdade. Marido e filha iam, às gargalhas, pelo meio de um causo e ela não quis atrapalhar. E estava todo mundo feliz. Tocasse o bonde que já logo chegava.

Foi numa freada mais brusca que aconteceu o desastre: um dos sapatos (da sogra) deslizou por debaixo do banco do motorista, indo acomodar-se aos pés do Pinheiro, o gordo de umbigo fundo.

Levemente, sem susto aparente nem maiores afobamentos, ele derriçou o braço, igual quando apanha café, e lentamente apalpou o estranho objeto alojado a seus pés. “Sujou!” Pensou, respirou e disfarçou. Pra todos os efeitos, aquilo só podia ser o sapato da fulana, deixado ali, propositalmente, ontem, afim de denunciar o pecador contumaz, hoje, e criar um inferno, amanhã. “E agora?” Como se livrar daquele elefante cor-de-rosa dançando balé no chão do carro? O que fazer? Como fazer? Quando fazer? Onde fazer?

Era preciso agir rápido.

Surgiu do nada um mato alto na beira da pista. Era a salvação. Subitamente, parou o carro com o álibi de obedecer à natureza. Abriu a porta e rápido feito rato roubando queijo expulsou o pérfido objeto pra fora do carro, lançando no mato a desaforada prova do crime, para longe do olhar indiscreto das damas, placidamente, alojadas na fresca do carro. Demorou-se o tempo de um padre-nosso. Voltou, aliviado, com a natureza atendida e a alma em paz. E, dali em diante, tocou o bonde assoviando, como se nada tivesse acontecido.

Pelo resto da viagem, até o pasto verde lhe sorria. Foi-se, o Pinheiro, dando bom-dia a tudo quanto é vaca, conversando com tudo quanto é cavalo, achando tudo de uma beleza sem medida nem quantia. Em breve, Aparecida e o perdão do padre cairiam como chuva criadeira depois da estiagem.

Lá chegaram, ao meio-dia, no calor de janeiro. Era só alegria! Estacionaram. Apearam do banco. Calçaram os sap...

- Fia, você viu um pé de sapato meu, por aí?
“Ai, ai, ai” – pensou o Pinheiro. “O sapato era da velha!”.

- Fia, eu tirei o sapato pra descansar os pé, e não arcanço ele agora.
Procura-se, vira-se banco, levanta-se assento, mexe-se em mala, vira que revira... e nada! Cadê o abençoado sapato?
- Milagre! Só pode ser milagre! Foi Deus que quis!
Nenhuma outra conclusão cairia mais óbvia para a sogra, dado o momento, já de bate pronto, apoiada, estrondosamente, pelo Pinheiro, dada a circunstância.

E a infeliz criatura varou o dia, manquitolando, calçada de um pé só, fritando a sola do pé descalço no asfalto quente, nem podendo trocar de esfoladura porque o pé eleito fora aquele, e, ainda, e, sobretudo, feliz da vida por ter sido escolhida para tão miraculoso destino.

Viu só? Taí o perigo de enxergar milagre em tudo.

“Quem faz de qualquer coisa um milagre, faz do milagre uma coisa qualquer.” Pensa que é inventação minha? Quem falou isso foi um papa, Bento XIV (quatorze mesmo!), lá pelos idos do século 18.

Agora, cá entre nós, pior que fazer do milagre uma coisa qualquer, só fritar o pé no asfalto quente! Não é mesmo? E viva a sogra do Pinheiro!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por dar a sua opinião.
Elogie, critique, mas faça isso com educação.
- Comentário com palavras de baixo calão será excluído.