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29 de julho de 2010

Tia J. - Renato Lôbo


O alvoroço foi grande quando minha mãe chegou com a notícia:
- Antonio, sua irmã ta grávida, de novo!
Papai encarou o fato, inicialmente, com cara de incrédulo. Mas depois, desatou essa com a maior naturalidade:
- Ih! Pinto de ovo velho não vira galo!

Tia J., realmente, ia a meio palmo de passada quando havia se casado. Na juventude, fora linda. Branca, lábios finos, mas bonitos, longos cabelos negros, um pouquinho só além do peso, mas olhos esverdeados... e a voz. Meu Pai! Que voz!

Carnaval? Tia J. puxava a marcha. Semana santa? Tia J. vestia a Verônica. Festas na cida-de? Tia J. cantava qualquer coisa, desde que cantasse. Aniversário? Quem puxava o para-béns? Tia J. dava certo em tudo. Só não deu certo na vida, coitada!

A Rádio Nacional, na época das Rainhas do Rádio, passou por lá caçando talentos. Desco-briu Tia J. E ela iria cantar no rádio, ficar famosa, ganhar dinheiro, viver um vidão.

Eu falei “iria”.

O pai, das antigas, não a deixou ir. Dizia que mulher cantora levava vida que não prestava. E ela não foi. Continuou lá, onde morava, se não no fim do mundo, pelo menos, no fim de suas ilusões. Ficou mal. Viveu mal. Teve um monte de filhos. Morreu antes da hora. Morreu sem ter vivido. Morreu sem ter cantado.

Dizer que o mundo todo ficou privado de sua voz, seria um exagero imperdoável até ao esti-lo. Mas que muita gente ficou... isso, ficou. Ficamos privados de uma voz única por uma sin-gela questão de alcance. O pai (que Deus o tenha) não captou o momento único da história de uma vida, que só acontece uma vez na vida de cada um, e em dado e irrepetível momen-to. Um momento único, tão único que, se a vez for passada, nunca mais acontecerá. Pode ser que aconteça de novo bem mais que aconteceria naquele momento, ou bem menos que aconteceria naquele momento, mas nunca mais aquele momento. Nunca, nunca.

Quem sabe, haveria Marlene, Dircinha, Linda, Dalva, Isaurinha... E tia J.? Quem sabe, eu não teria um LP 45 rotações com sua inconfundível voz? Autografado por ela? Com a marca do batom do beijo dela? Quem sabe não haveria uma minissérie de TV com ela? Por que não?

Quem sabe, ela tivesse sido mesmo uma artista de vida duvidosa, como preconizou o pai? Quem sabe, teria se casado e descasado um punhado de vezes e, até, morrido infeliz? Quem sabe? Quem sabe, tanta coisa!

Mas... E daí?

Quanta gente enfiou a viola na mala e saiu pra ganhar a vida sem a menor pretensão de su-bir no pódio, se a menor previsão de chegar lá e sem a menor garantia de dar certo. Quanta gente saiu e ganhou. Quanta gente saiu e perdeu. Não sabemos. Mas sabemos que o im-pensável, sempre, será não ter saído. Não há garantia nenhuma de ganho para quem sair. Mas para quem não sair, a garantia de perda já é certa, pelo simples fato de ter ficado.
O pai não tinha o direito de interferir na vida dela. Ninguém tinha. Ninguém podia ter cometi-do a eutanásia do destino, como foi feita. Ninguém podia ter definido por ela quando e como, de que jeito e por que motivo ela seria o que a vida designou para ela ser, quando a fez nascer com a inconfundível voz que lhe foi confiada.

Quando a gente nasce, a vida nos dá uma ordem. Ela diz: Você tem equipamento para tal função – e especifica o uso, – então, vai lá e faz. Parece simples e é simples. A menos que a gente complique, a menos que enfie obstáculos onde não existam, a menos que feche a cara diante do sorriso da vida, a menos que não mude de calçada por medo de cair no meio da rua, a menos que cometa o pecado venial (com pretensão a mortal) de não ousar, é simples. Vai lá e faz.

No caso dela, quando ela nasceu, a vida só lhe deu uma ordem: Você tem a voz mais linda que havia no estoque disponível. Vai lá e cante!

Ela não foi. Decerto não pode ir. Poderão dizer que escolheu não ir. O fato é que não foi.

Uma coisa é certa: ela não teria sido mais infeliz do que foi. Não teria sumido no imenso de-samparo em que sumiu. E caso tivesse sofrido todos os sofrimentos e morrido todas as mor-tes, em nada a sua vida teria sido diferente de todas as outras deslustradas e opacas vidas, a não ser por um fato atordoante e nem um pouco confortador, se lembrado: ela haveria su-bido num palco e cantado. Para todo mundo ouvir. Inclusive quem viesse depois, e depois, e depois.

Ela não fez. Não pode fazer.

Minha mãe regulava na idade com tia J. Cada vez que ligava o rádio e escutava alguém cantando, falava:
- Olha lá! Era pra ser a J. Ela, sim, canta muito melhor!
E virava-se para papai:
- Se não fosse seu pai...

Papai resmungava alguma coisa, engolia em seco, não dava o braço a torcer. Mas sabia que no fundo, no fundo... alguém havia errado. Os pais também erram. Com a melhor das inten-ções, eu sei, mas erram. São apenas pais. Às vezes, conseguem até errar. Faltaram alguns centímetros de coragem para fazer o mundo conhecer uma cantora sem igual. Faltou pouco para papai se orgulhar ainda mais da irmã sem igual que tinha, independente do sucesso e da fama, da Rádio Nacional e das outras rádios, sem esquecer a Rádio Difusora Brazópolis, ZYZ 26 – “A voz amiga do sul de Minas”.

Não era questão de fama. Papai sabia. Era uma questão maior: fazer o que gosta e ser feliz. Uma única vez a estrela brilhou para a irmã dele. Ela viu o brilho, mas não seguiu o clarão.

E o pinto do começo da história, virou galo? Não sei. Nunca mais vi.

Se virou, tomara que tenha virado galo índio, de bela plumagem e esporas afiadas para bri-gar. Porque a vida gosta mesmo é de uma boa briga, precisa disso, espera por isso e ai de quem não souber ou não quiser brigar. Se ele não tiver espora afiada, alguém vai levar a melhor, e não será ele.

Mas, sobretudo, se virou galo, tomara que tenha herdado a voz sem igual da mãe. E que nem que seja em cima de um muro, feito galo mesmo, ou num barzinho de quinta, agarrado num violão de quarta e num microfone de terceira, e ganhando uma merreca de segunda, ele esteja cantando de primeira. Nem que seja só para consertar o destino e reescrever a história.

Não é, tia?

Um comentário:

Antonio Oliveira disse...

Conheci sua tia Renato. Realmente canatava muito bem. E é bom ler suas lembranças. Nos presentee com mais...sempre mais.

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