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17 de agosto de 2010

ESTRELA CADENTE - Renato Lôbo

Estrela cadente – Renato Lôbo

Quando a estrela riscou o céu, ela não tinha nenhum pedido. Ela não sabia querer.

A ponte caíra. Por ali, ninguém passava. Ela teria de descer do ônibus. Desceu. Teria de ter forças pra caminhar. Caminhou. Teria de atravessar o barranco da estrada. Mas aí não deu: o barranco da beira da ponte era alto demais e serviu de esconderijo à dor. A noite caía. Ela chorou. E quando a estrela riscou o céu, era pra ela fazer um pedido, mas ela não tinha nenhum pedido. Ela nunca soube pedir, nunca soube querer. Nunca pode. Nunca quis. Essa era a primeira vez em que algo apenas dela podia querer algo que não fosse apenas dela só. E era por isso que ela estava sentada à beira do barranco da ponte caída, depois da chuva, na noite, sem ninguém. Solidão é uma ilha com saudade de barco. Era assim que ela estava.

Mas, nem sempre foi assim!

Chamava-se Maria da Boa Vitória. Nada que descombinasse tanto quanto o nome e a vida! Morava na vila ao pé da serra. De todas as memórias que mais tarde visitariam sua lembrança, as melhores eram as da serra que cercava a vila. De longe, de tão verde, virava azul. E azul era o céu. O manto da Virgem. A cor dos olhos do pai. A cor que ela passaria a vida in-teira buscando em todos os outros olhos. De homens e de quem quer que fosse e de qual-quer cor. Desde que fosse azul.

Ela era uma moça magra, de feição fina, pele muito clara e olhar caído em olhos cor-de-mel. Ela olhava o mundo por baixo, como quem traçasse um ângulo com o olhar e buscasse outra coisa além de um algo à frente, e precisasse dessa outra coisa para sobreviver.

Em casa, todos eram assim. Todos se aniquilaram ou foram aniquilados sob o peso, às ve-zes, da presença, às vezes, da ausência daqueles mesmos olhos azuis atrás de um olhar que ora passou ora faltou. Inutilizados, infantilizados, infelizes. Eram isso e eram só isso e nada mais. Foi isso que sobrou de uma vida que não tinha muito a viver nem muito a sobrar.

Aí, ela apareceu. E depois dela vieram mais três, os últimos. Ela era a linha do equador, o meio da Terra. Quem veio antes, não valia nada. Quem veio depois, valia menos ainda. Ela era o divisor de águas de um terreno seco, numa vida seca. Foi ali que as barcas se destro-çaram e o navio da família naufragou. Foram juntas as últimas embarcações.

Dependência, desprezo, drogas, desatino, desilusão. Ninguém ficou pra contar a história. Ninguém viveu para escrever a história, mas ninguém morreu para constituir história. A verdade era que não havia história para contar. Quando a miséria é demais, a mediocridade toma a frente, toma conta, toma a gente. O que sobra, nem vale a pena contar. Sobra a tristeza: aquela mão gigante que aperta o coração.

Sentada no barranco da ponte caída, ela, ainda mais caída que a ponte, deixou que lem-branças viessem. E, apesar da tristeza, elas vieram.

Ela era a princesa montada à garupa do pai que, com ele, voava sobre serras, subia montes, descia pastos, atravessava rios. Nada havia que os segurasse. Quando o sol queimava o corpo, era bom. Se a chuva encharcava a alma, era melhor. Eles eram um só. Talvez um só ainda fosse muito. Eles eram menos que um só. Eles eram apenas eles, apenas deles, e só, numa fusão inigualável. A princesa dos olhos de mel e o grande rei dos olhos azuis. O resto não havia. Ninguém cabia ali dentro. Só eles eram deles. E deles, só eles, só.
Escapa a qualquer entendimento o que realmente aconteceu. Não havia poder capaz de a-meaçar aquele Céu na Terra. Então, no horizonte de um céu azul, jamais ameaçado sequer por nuvens brancas, uma tempestade se formou. Trovões, raios, ventanias. E a chuva caiu. E o mundo desabou. A princesa dos olhos-de-mel deu de fazer a única coisa que jamais po-deria ter feito: ela cresceu. Que desgraça! Cresceu. Surgiram os primeiros sinais de que a princesa não era nem podia mais – nunca mais – ser a princesinha de olhos-de-mel do rei de olhos azuis. A chuva caiu. Despencou. Havia uma ponte. A ponte caiu. Perdeu-se.

A arte de perder não é nenhum mistério. Tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perde-se um pouquinho a cada dia. O segredo é aceitar, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Com o tempo, perde-se mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subseqüen-te da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero lem-brar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério. Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério. Por muito que pareça (escreve!) muito sério.

O tempo passou. Sempre passa! Mais tarde outra estrela riscou o céu.

Mas agora ela já era outra. O tempo passado fez tudo passar. Tudo passa, sempre passa. Muito é quando os dedos da mão não são suficientes. Muita coisa havia mudado. Havia desilusão, mas havia certeza. Desilusão é a noite que cai contra a vontade do dia. Certeza é a idéia que cansa de procurar, e pára.

Ela mudou de nome. Daí em diante, seria só Maria e já era muito. E já era tudo. Nasceu Vitória. Viveu fracasso. Quando morreu, era só Maria. E já era muito. Crisálida que virou borboleta... e voou.

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