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1 de outubro de 2010

O SEGREDO (2) – Renato Lôbo

Antes da seis, ainda não havia nem de longe a cara do sol despertando a cidade. No lusco-fusco de final de madrugada, o delegado já estava em pé, vestido, pronto, barbeado, encasacado, impoluto, mesopotâmico, à altura do cargo. Botou o pé pra fora de casa, olhou até onde a vista andou, assuntou até onde o sentido deu, comeu a beira do bigode, abriu o portão do jardim e saiu.
Dormia a cidade no frio de junho, gelada e coberta de névoa, toda cheia de pudor. Da casa à delegacia, como fazia todo dia, contou obsessivamente os passos. Não ficava longe. Na verdade, era só atravessar a praça e alcançar a ponta da rua do meio. Um tirinho de espingarda!
E ali, bem ali, era que se guardava o destino de um homem, aliás, de muitos homens, minto, praticamente, da cidade toda. “Aquilo ia ser pior do que cuspir na cara do papa!” – lembrou-se, engolindo em seco a frase de véspera.
Em sua custódia, trancado, encafuado, na gaveta de baixo, dentro da maleta, no interior da gaveta, atrás da porta do armário, na outra margem do rio, fora do alcance de qualquer das eminentes egrégias personalidades locais, encontrava-se um segredo por cujo acesso proibido todos dariam um dedo.
“Meu Deus, é muito para um homem só!” – pensou, escatológica, a autoridade.
A partir dali, não havia mais dúvida que turvasse o céu daquela alma. Era preciso agir por si mesmo: justiça com as próprias mãos. Ou, então, melhor nem pensar! Seu futuro? Bem podia ser que o destino o aclamasse e a História o perdoasse. Mas quem não ia engolir era a Creusa, sua patroa, a quem já entrevia, enfurecida, virar-lhe as costas e dizer:
- Babáu!
Mas, que importância tinha o babáu da Creusa? Raramente, um homem traz nas mãos o curso da História. Na aurora daquele frio dia de junho, com a chave da fechadura na boca da porta, ele decidiu:
- Agora, ou nunca!
Olhou para os lados, averiguou as ruas: tudo dormia, silêncio total. Tamanha a cerração, nem o relógio da Matriz mostrava a cara. Tudo coberto, escuro de tão branco. Girou a chave.
Entrou.
Era preciso agir rápido. Não acendeu a luz. Teve de caçar a chave da gaveta, tentear o código de números da maleta e, ainda no escuro, adiantar-se ao olhar indiscreto do sol.
Lá estava ela.
Envolvida em saco plástico, lacrado a durex, havia uma sacola de papel com o escrito “servimos bem para servir sempre”, e dentro dela uma pequena caderneta espiral, de bolso, com capa amarelada, sem nada desenhado e nada escrito a não ser, prosaicamente, CADERNETA, e sem nenhuma distinção além daquilo que ela representasse. Ela era a portadora do segredo. Não de um segredo qualquer, mas DO SEGREDO.
E tão augusta personalidade vinha manchada de dedos de gordura e de farinha branca. Quem roubou aquele tesouro não teve tempo nem coragem de romper o lacre. Agora, ela estava lá, pura, recoleta, mais virginal que um botão fechado de rosa branca.
- Abro ou não abro? Abro ou não abro? Abro ou não abro?
Abriu.
Folhas vazias. Folhas arrancadas. Folhas cortadas pela metade e, de repente, o terrível segredo. O delegado sentou-se, encostou-se ao espaldar curto da cadeira, respirou fundo, ajeitou os óculos, e leu. Engoliu, sílaba por sílaba, cada palavra escrita por mão de criança de 10 anos. E nada mais. As páginas seguintes, até o final, só exibiam desenhos garatujados, arte rupestre, provavelmente, da autoria da mesma criança que havia, inocentemente, de próprio punho transcrito algo que ela própria nunca teria a mínima chance de avaliar o teor do conteúdo e o valor do ato.
- É um disfarce! – murmurou, rindo, de si pra si a voz possante do delegado.
Ele não se conteve e já conhecia o segredo.
Mas e agora? Mas e os outros? E se aquilo vazasse? E se chegasse ao conhecimento de Itajubá? E se escapasse ao controle? Era um patrimônio de décadas, séculos, sabe Deus, quanto tempo! Naquele patrimônio havia sido aceso o brilho da Vargem Grande: a inveja do Vale do Sapucaí. E agora, só ele sabia, mais ninguém. E o peso do conhecimento já lhe dobrava a espádua. “Alis grave nil”: nada mais pesado do que asas.
E agora o que fazer, a que patrono recorrer, quando até o justo se inquieta?

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