Joguei minhas chaves pela janela, desesperada, e gritei para que D. Terezinha subisse. De súbito, ela entrou no meu quarto já com um copo de água com açúcar nas mãos e com toda calma do mundo, falou:
- Dra. Darcilene, não há gritos de socorro. A senhora anda trabalhando muito. Isto é cansaço! Teve um pesadelo, foi só isto.
Naquele dia, à tarde, fiz inúmeros atendimentos pesados. Um, em especial, me deixou muito angustiada. Conversei e fiz a defesa de um senhor acusado de molestar três crianças do bairro onde morava. Ele, réu confesso, me contou tudo tintin por tintin. Feito isto e já exausta, fui para casa com uma pilha de processos para estudar. Antes do ‘Banco 30 horas’, eu já trabalhava 30 horas em um dia de apenas 24. Eu e todos os Defensores Públicos, com certeza. Devíamos reivindicar a patente! E sem direito a ter telefone...
O fato é que minha salvadora brazopolense, com ares de Sherlock Holmes, prosseguiu:
- Doutora Darcilene, isto é galo cantando!!
- Galo?- respondi perguntando- Então ficaram todos loucos?! Tem uma pessoa pedindo socorro, pronunciando meu nome, eu estou desesperada, e a senhora acha que isto é galo cantando?!
- É sim! Vamos ouvir... Há galos cantando. Eles são assim, quando um canta, o outro responde. O primeiro canta ‘cocoricóóóó’ e a senhora entende “Darcileeeeene“; já o outro responde, ‘cocoricóóó’ e a senhora entende “ socoooooorro”... Estão cantando a noite toda! ... Olha, Brazópolis fica perto de Campos do Jordão. Entre as duas cidades há um vale, e onde há vale, há eco... Aqui tem muitos galos. O barulho que a senhora está ouvindo é de galos cantando, só isso, um canta e o outro responde... e no meio disso há um eco, que faz distorcer o som!
Pedi à Dona Terezinha, com jeito, para que voltasse pra casa, pois era ela quem precisava dormir. Durante as três madrugadas seguintes não peguei no sono. Ouvia os tais gritos de “socorro” da mesma forma e de madrugada, somente. Analisei, então, com mais afinco, a ‘tese’ do galo. Ninguém, mas ninguém no mundo, conseguiria ficar gritando por socorro e me chamando, com a mesma voz, na mesma intensidade, por três madrugadas consecutivas [O primeiro dever da inteligência é desconfiar de si mesma – Stanislaw Kersy Lec]. Desconfiei. E, supondo estivesse D. Terezinha correta, eu cometeria um “galocídio” assim que amanhecesse! O ditado popular “quem canta, os males espanta”, não pode englobar os galináceos.
Fui trabalhar logo pela manhã e mantive minha rotina de processos e atendimentos. Não havia tempo para cometer ‘galocídios’, somente para alimentar a possibilidade de pedir remoção daquela Comarca, o que consegui, depois de rezar para todos os santos. Consegui! Entrei no meu carro emocionada, engatei uma primeira e finalmente cheguei na Rodovia Fernão Dias. Adeus Dr. Décio, adeus maravilhosos pés-de-moleque de Piranguinho, adeus Dona Terezinha, adeus lindos ipês amarelos, adeus Brazópolis!
Tudo bem que, no meio daquele revolto mar de pensamentos, ao invés de virar o volante para a direita, acabei indo para a esquerda e li, beeeem lá na frente, uma placa: Bem-vindo a São Paulo. São Paulo?! Mas isso foi só mais um detalhe, não importa. Senti um alívio profundo na alma e, ao invés de rir de mim mesma, gargalhei.
C’est la vie.
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