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8 de setembro de 2010

OS BROCHES DA MARTA (1) – Renato Lôbo


Toda vez que o relógio da parede badalava, exatamente, 11.30 da manhã, podia sair à jane-la: ela vinha descendo, pé ante pé, o passo curtinho, medido, calculado e exato, pela calçada de cima. Era pequena. Baixa. O cabelo sempre arrumado, nem um fio fora do lugar. O tailleur impecável, combinando ton-sur-ton, verde sobre verde, azul sobre azul, vermelho sobre... Não, peraí, vermelho não havia. Nunca vi.

Das meias, lembro-me bem. Quando não fossem finas, iam a meio da canela, absolutamente no tom imposto pelas roupas. Tudo muito combinado, alinhado, escovado, passado, limpo, ao extremo dos extremos, e isso não precisa nem dizer. Esquecime das mangas que cobri-am impecavelmente a blusa de baixo, dobradas a meio punho, expondo relógio, pulseiras e outras riquezas à altura da dona. Havia também um ou outro colar, uma correntinha fina com uma figa de ouro, ou outra, mais grossa, com o santo patrono que era, se me lembro, o Sagrado Coração, escrito ao redor: “Eu tenho confiança em vós”.

A boca era pequena e, se não fosse o batom vermelho, nem dava pra saber que existia. O olhar inquieto, sempre atendendo, sempre cumprindo. As mãos bem cuidadas. Os sapatos pretinhos, engraxados, lustrosos, compunham o pedestal de uma estátua que andava, falava, gesticulava e usava broches. Ah, os broches! Merecem um parágrafo só deles.

Os broches da Marta prendiam-se à frente dum lenço, à beira do tailleur, à renda da camisa ou a qualquer outra coisa de onde pudessem se mostrar, com a majestade de um broche de princesa ou um camafeu de Marta. Havia de todo tipo. Havia um de ouro, com uma esmeralda bem verde compondo ao centro, para onde retorciam pequenos engastes de prata segurando a pedra. Havia um de menos ouro, mas nunca de latão, com um rubi vermelho, que brilhava feito sangue escorrendo quando se espeta o dedo em espinho de roseira. Todas as pedras eram lindas. Não sei se eram esmeraldas. Não sei se eram rubis. Nem sei se eram pedras. Mas que importa? Faz tanto tempo, e elas continuam aqui por dentro, e a grandeza não está no quilate da jóia, mas no tempo que ela é capaz de se dependurar na memória. Ah, e havia também um camafeu branco, com rosas pintadas à mão, todas rosas, rosas rosa. Dos broches da Marta, em lugar nenhum, havia igual.

De repente, às 11.30 em ponto, não mais, não menos, ela dobrava a curva da loja do Alfredinho, descendo a rua em desfile solene, quase religioso, sem Banda tocando, o que é uma falta a se declarar. Olha que precisava! Os pés se moviam com a leveza de não tocar o chão e alçar vôo, por cima da calçada de cima, até alcançar o sobrado de D. Denise, onde eram invariavelmente interceptados e saudados pelo Zequinha Bebiano, de um palanque improvisado no jardim, entre rosas, margaridas e tinhorões. A casa não existe mais, o jardim não existe mais, o palanque improvisado de onde Marta era saudada não existe mais. Decerto, não existe mais o posto de onde atendia. Mais um pouco e nem eu existo mais! Mas cuidemos para que a memória exista. Essa, sim, merece ficar, precisa ficar.

Naquele sobrado envelhecido, cor-de-rosa-terra-batida, com janelas compridas do tamanho de portas, e portas de duas folhas mais altas do que simples portais, o porão era ocupado pela desocupação. Não havia como ali subir facilmente sem nenhum esforço para pular as pedras rejuntadas dos portais, nem bem juntas nem bem separadas. E o portão velho do ve-lho jardim rangia cada vez que alguma alma passasse por ele. Será que já se despedia? Ó meu Deus!, agora deu medo e falo bem baixinho: é que cemitério ficava logo acima!

Pois era ali, naquele portão e à frente dele, que ela quebrava a justa intenção do movimento e assumia, pela dianteira, a direção do Bar do Jucabé, do outro lado da rua, na calçada de baixo, talvez mais pobre, talvez menos glamourosa, talvez sem grandes histórias: era só a calçada de baixo.

Quantas vezes, como essa luz me alumia, vi carro parar pra Marta passar. E quando o carro parava, ela passava – passinhos pela pedra – na mira do bar. Ali, naquele bar, ela almoçava, todos os dias, exatamente quando faltasse quinze para o meio-dia, com a solenidade de uma rainha, cercada de súditos leais e plebeus: gente da rua, da rua da gente. E veja que ela nem fazia conta!

2 comentários:

Anônimo disse...

Eu coheci o Zequinha Bebiano,em 1972 mais ou menos morava em frente a Padaria do Marinho,faleceu logo após.
Donizetti

Anônimo disse...

Caro Renato, o blog “A Janela” já faz parte do meu cotidiano, pois adoro ler todas as suas interessantes crônicas, e esta em especial, me trouxe vívidas lembranças da minha infância, pois sou filha de Denise e neta do inesquecível José Bebiano.
Parabéns “Renatinho” assim o chamávamos naquela época da qual tenho muitas saudades.Zélia

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